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Lagoa da Conceição vive tragédia anunciada após crescimento desordenado e desastre ambiental

Imagem Ilustrativa

Quando nos aproximamos de Florianópolis pela BR-282, ainda na vizinha São José, uma placa de trânsito anuncia a Capital catarinense. No alto da pista os dizeres orientam o motorista a continuar seguindo em frente para alcançar o portal turístico da cidade, o Mercado Público, as praias e, por fim, a Lagoa da Conceição. O bairro no Leste da Ilha de Santa Catarina ganha destaque com a placa marrom: estamos diante de uma joia da natureza.

Quatro décadas de ocupação desordenada em torno da maior lagoa de Florianópolis trouxe a herança da eutrofização de suas águas. Rompimento de estrutura para tratamento de esgoto em 2021 protagonizou pior desastre ambiental da cidade e empurrou laguna para a beira do precipício

Cartão postal e de grande potencial turístico e econômico, os bairros no entorno da Lagoa da Conceição enfrentam uma expansão populacional intensa nas últimas quatro décadas. Essa ocupação, no entanto, vem com um alerta: desde 2020 a rede de esgoto instalada na região não comporta mais novas ligações.

Equacionar o crescimento urbano e o saneamento básico tem sido o maior desafio para a sobrevivência da lagoa que dá nome ao bairro no Leste da Ilha.

A morte de peixes e siris, a proliferação de algas, o assoreamento e até a mudança da cor das águas são problemas vividos e potencializados desde a tragédia ambiental de 2021, quando uma estrutura que recebia o esgoto tratado do bairro extravasou. Todos os dilemas citados são sintomas da principal doença enfrentada pela maior lagoa de Florianópolis: a eutrofização cultural.

Mas o que é essa eutrofização cultural? Aqui chegamos à ação humana. O processo é desencadeado pelo lançamento de resíduos no ambiente aquático, como esgoto doméstico e industrial. A mudança química provocada na lagoa favorece a proliferação de algas, que reduzem o oxigênio presente no sistema aquático.

A transformação na Lagoa da Conceição, impulsionada pelo crescimento desordenado no seu entorno, é debatida (e mesmo anunciada) por inúmeros estudos realizados desde o início dos anos 1980. Mas a resposta do poder público até hoje não é proporcional à gravidade abordada.

A abrangência insuficiente da rede de esgoto, o avanço de ocupações irregulares e os problemas na própria rede provocam prejuízos para a lagoa. Com baixa troca de água com o oceano, a laguna reflete transformações provocadas pela bomba de nutrientes despejada continuamente – tornando uma realidade difícil de ser revertida.

Do rural ao cartão-postal

A família de Ademar Lemos, o Seu Neném, faz parte da história de crescimento vivido pela Lagoa da Conceição a partir dos anos 1980. Foi nessa época que o bairro abandonou a característica rural: em apenas duas décadas, até o início dos anos 2000, a população na bacia hidrográfica da laguna (que considera também as regiões que abrigam os rios que alimentam a lagoa) saltou de quase 8 mil moradores (1983) para cerca de 28 mil (no fim dos anos 1990).

Os dados são do estudo “Efeito da drenagem urbana nas características físico-químicas e biológicas da água superficial na Lagoa da Conceição”, conduzido pela professora Alessandra Fonseca, do departamento de Oceanografia da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

Seu Neném faz parte dessa evolução urbana. “Manezinho da Ilha”, ele voltou a Florianópolis em 1982, após buscar trabalho em outras cidades. De infância pobre no bairro Ingleses, no Norte da Ilha, ele partiu aos 18 anos pela escassez de trabalho, mas retornou com “os novos ares” que pairavam sobre a região da Lagoa.

A nova casa escolhida foi na Barra da Lagoa, uma das localidades que integram a bacia hidrográfica da Lagoa da Conceição – que inclui também os bairros Rio Vermelho (ao Norte), a Costa, o Canto e o Porto da Lagoa (ao Sul), a Barra da Lagoa, a Praia da Joaquina, além do bairro que dá nome à laguna.

Quando voltou para a cidade natal, Seu Neném viu a região em metamorfose: a vila rural onde prevalecia a pesca e as atividades de tecer se transformava também em polo turístico. Morar perto da Lagoa da Conceição deixou de ser exclusividade dos pescadores que viviam da retirada de espécies como siris, camarões graúdos, carapevas e berbigões.

A região ganhou bloco de Carnaval e iate clube. Um dos pivôs para a mudança foi o calçamento da avenida das Rendeiras e do Morro da Lagoa da Conceição – antes o traslado era feito geralmente com cavalos e carroças, lembra Seu Neném.

Com faro para a oportunidade, ele previu um futuro generoso: “vi que seria um lugar turístico. Eu tinha que colocar estaleiro, marina, investir em pesca”, lembra. Foi então que resolveu comprar o terreno da avó de sua então namorada, mas com uma prerrogativa: que firmassem o relacionamento.

A casa foi erguida na beira do então recém-estabilizado canal da Barra da Lagoa, uma fina “artéria” de dois quilômetros que aumentou as trocas entre o oceano e os quase 20 km² de águas da Lagoa da Conceição.

Hoje aos 81 anos, Seu Neném pode falar que teve todo tipo de relação com a lagoa: começou como fiscal de pesca do IMA (Instituto do Meio Ambiente), construiu um rancho para a prática e hoje administra a Estação Náutica do Seu Neném, uma marina. Foi lá que junto à esposa Neide criou as cinco filhas – e onde cresceram e moram hoje quatro netas.

O início do saneamento básico

Na época em que Seu Neném se estabeleceu perto da Lagoa da Conceição, lá nos anos 1980, não havia rede de esgoto em toda a região. A pressão urbana, por outro lado, já começava a ser sentida pela laguna.

O primeiro esforço para tentar equacionar o problema ocorreu em 1988, com a finalização do primeiro sistema da região, atendendo parte dos moradores das localidades do Centro da Lagoa, Canto e Porto. As dunas que isolam a região da praia da Joaquina passaram a ter um papel fundamental em ‘filtrar’ o esgoto produzido pelo novo contingente de moradores.

Após passarem pelo tratamento cuja eficácia estimada é de 95%, realizado na ETE (Estação de Tratamento de Esgoto) Lagoa da Conceição – instalada nas dunas da região -, as águas evaporam ou retornam para a laguna por meio do lençol freático. Quase 15 anos depois, hoje a rede ainda está longe de alcançar todos os moradores (veja o infográfico abaixo). Cerca de 2,3 mil moradores são atendidos, mas 30% da população depende de saídas individuais.

Na casa de Seu Neném a rede de esgoto chegou somente em 2008, mais de duas décadas depois de se mudar para a região. Esta foi a segunda ETE construída na área, obra realizada pela Prefeitura de Florianópolis e a Casan (Companhia Catarinense de Águas e Saneamento). Com ela, os moradores da Barra da Lagoa e da Costa da Lagoa passaram a ser atendidos pela rede de esgoto. Cerca de 6,9 mil moradores estão conectados na rede nestes dois bairros.

Até então, os efluentes da família eram despejados em cinco fossas sépticas instaladas no imóvel. Esta forma de tratamento primário é utilizada em áreas onde o esgoto não chega, e devolve os efluentes para a lagoa com taxas menores de tratamento – que oscilam entre 60 a 80% quando adequadamente instaladas.

“Depois que fizeram a rede melhorou bastante, a gente via muita fossa de banheiro indo direto para a lagoa. Mas hoje ainda vemos muito despejo de óleo de lancha direto no canal e muita gente não está conectada”, diz Neném.

As duas redes não dão conta de atender toda a região da Lagoa. Enquanto a primeira chega a 70% da área pretendida, a segunda alcança 88%, segundo dados da Casan.

No caso da ETE Lagoa da Conceição, o número de ligações chegou ao limite em 2020. Conforme a Casan, ampliar essa estação para atender novos moradores esbarra nas limitações do local onde está instalada: o Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição, uma área protegida. As novas casas construídas na região, mesmo aquelas onde a rede alcança, acabam dependendo das fossas sépticas.

“Não há como ampliar a rede para os demais locais porque a estação está no limite máximo, teríamos problema em dispor o material”, explica Francisco Pimentel, engenheiro sanitarista e chefe da Agência Florianópolis da Casan em Florianópolis.

Rio Vermelho e o esgoto desaguando na lagoa

Para piorar o cenário, todo o bairro Rio Vermelho não conta com rede de esgoto e nem há perspectiva para a construção de uma estação, segundo a Casan. E é bem nessa localidade que atravessa o principal rio que deságua na Lagoa da Conceição, o João Gualberto Soares.

Com 81,84% do território ocupado de forma irregular, o Rio Vermelho concentra o maior número de construções consideradas clandestinas na Ilha de Santa Catarina, segundo levantamento realizado pela Prefeitura de Florianópolis e divulgado em junho deste ano.

Além disso, não há dados sobre o número de moradores que utilizam sistemas individuais de esgoto e quantos despejam diretamente na laguna ou no lençol freático sem tratamento prévio.

Entre janeiro de 2021 e julho de 2022 o programa Trato pela Lagoa, iniciativa da Casan e da Prefeitura de Florianópolis, começou um trabalho pioneiro em mapear a realidade sanitária de parte da região, nas localidades do Centro, Canto e Porto da Lagoa. Ao todo, 3.050 imóveis foram inspecionados, tanto aqueles conectados na rede de esgoto como os que dependem de sistemas individuais de tratamento. Os resultados surpreenderam negativamente.

A eutrofização da lagoa – afinal, o que é?

O despejo na Lagoa da Conceição de esgoto parcialmente tratado ou in natura diretamente provoca a eutrofização. Esse processo está relacionado aos recorrentes casos de mortes de peixes na lagoa.

Isso ocorre porque os efluentes entram carregados de nutrientes, como fósforo e nitrogênio, que servem de alimento para as algas. Essas algas então se proliferam e, vivendo na superfície das águas, impedem a entrada de luz solar e diminuem a concentração de oxigênio. Todo esse processo contribui para a mortandade dos animais, plantas e a proliferação de bactérias. Esse processo se chama eutrofização e ocorreu em grandes dimensões em janeiro e fevereiro de 2021, após o rompimento da lagoa de evapoinfiltração, tornando-se uma doença crônica.

O cenário é ainda mais grave quando se leva em conta que a Lagoa da Conceição é muito frágil: a troca de águas com o oceano é pequena. Uma pesquisa conduzida pela professora Alessandra Fonseca em 2004 identificou que cerca de 80% dos nutrientes que entram na lagoa acabam ficando retidos no sistema – o que potencializa a sua degradação.

Para entender como a laguna mudou, um grupo de pesquisadores da UFSC se debruçou nas pesquisas feitas sobre a lagoa entre os anos de 2001 e 2015. O trabalho publicado em 2016 na Revista Brasileira de Recursos Hídricos utilizou, por meio da análise das coletas de água, categorias de eutrofização: quanto mais nutrientes presentes na lagoa, maior o nível.

Foi constatado que, a partir de 2005, a Lagoa da Conceição passou do nível mesotrófico para o eutrófico – quando a presença de nutrientes e a produção do meio deixa de ser normal.

A beira do precipício

Pela cor da água é possível saber qual dos dois corpos – as águas da Lagoa da Conceição ou do oceano – está com a “bola” da maré no Canal da Barra da Lagoa, onde mora Seu Neném. Quando ocorre a entrada das águas do oceano brilha um azul cristalino. Do contrário permanece o verde. Entre janeiro até março de 2021 as águas ficaram marrons.

Isso porque na manhã de 25 de janeiro de 2021 houve o rompimento da lagoa artificial da Casan, empresa responsável pelo abastecimento de água e saneamento básico em Florianópolis. A estrutura – localizada em meio às dunas da Joaquina – recebe o esgoto tratado dos bairros Lagoa da Conceição e do Canto da Lagoa.

Naqueles dias, a lagoa foi tomada pelos efluentes da estação de tratamento. “Nós retirávamos os barcos para a limpeza e depois corríamos para limpar os pés, com medo de pegar alguma micose ou algo do tipo. Era um pouco nojento”, lembra Nádia, uma das filhas de Seu Neném.

O rompimento da lagoa de evapoinfiltração – responsável por infiltrar os efluentes tratados no solo – localizada na avenida das Rendeiras (aquela estação construída lá em 1988), a cinco quilômetros da Marina do Seu Neném, foi considerada a maior tragédia ambiental de Florianópolis.

Naquele 25 de janeiro uma enxurrada de efluentes “escorregaram” pela região da rua Mandala, que cruza a avenida das Rendeiras, afetando 66 pessoas de 35 casas, que ficaram imersas em esgoto. O destino final dos dejetos foi a lagoa: “o rompimento empurrou a Lagoa da Conceição para a beira do precipício”, classifica o biólogo Paulo Horta.

Após a entrada dos efluentes, o projeto Ecoando Sustentabilidade, da UFSC, identificou que a Lagoa da Conceição não estava mais eutrófica – como já alertava o estudo publicado em 2016. Passou agora para o nível hipertrófico, o mais alto na categoria.

“Antes disso a Lagoa já não estava bem. No verão anterior, de 2019, já tínhamos identificado a morte de peixes e presença de espuma. E já naquela época alertamos para a necessidade de ferramentas de biorremediação [tecnologia para retirar quantidades de fósforo e nitrogênio, entre outras substâncias]. Agora todo impacto, mesmo que pequeno, provoca mortalidade”, explica Horta.

Siris mortos, presença de metais em peixes e a incidência da maré marrom, quando há floração de algas – fenômenos ocorridos em 2021 – compõem o cenário de degradação da maior lagoa da Ilha de Santa Catarina.

Tragédia podia ser evitada

Assim como o destino eutrófico da Lagoa da Conceição, o rompimento da lagoa de evapoinfiltração também era uma tragédia anunciada. Uma série de fatores contribuíram para o problema, como o acúmulo de grandes quantidades de lama no fundo dela, que dificultavam a infiltração da água e diminuía a capacidade de armazenamento.

Desde 2018 a Casan alertava para a urgência do problema, principalmente levando em conta que a ETE operava no limite – mas nada efetivo foi feito até o rompimento. As chuvas torrenciais daquele mês contribuíram para o desastre.

Em audiência pública realizada na Alesc (Assembleia Legislativa de Santa Catarina) em outubro de 2021, nove meses após o desastre, a Casan sustentou que havia uma grande dificuldade em realizar obras no local. Isso porque no entorno da ETE se encontra uma área de preservação: o Parque Natural das Dunas da Lagoa da Conceição, estabelecido no mesmo ano em que foi construída a estação.

A situação provocou um entrave, segundo o procurador-geral da Casan, Alisson de Souza: as ações de investigação dos problemas e as interferências precisam sempre passar por licenciamento ambiental. A própria drenagem do material lamoso requer a instalação de equipamentos e a abertura de áreas, o que só pode ocorrer com a anuência dos órgãos ambientais.

O IMA e a Floram (Fundação do Meio Ambiente de Florianópolis) receberam, em meados de 2020, pedidos de permissão para realizar obras na região. Mas conforme a superintendente da Floram, Beatriz Campos Kowalski, e o diretor de engenharia e qualidade ambiental do IMA, Fábio Castagna da Silva, as solicitações nunca deixaram claro o tamanho da urgência.

“A interferência só poderia ser feita com risco envolvido”, ressaltou Beatriz. A Casan foi condenada por crime ambiental e, em novembro de 2021, concluía a sindicância interna referente à responsabilidade pela tragédia e o pagamento das indenizações aos atingidos. Semanas depois a Lagoa da Conceição recebeu o programa Trato pela Lagoa, citado acima e que identificou e começou a corrigir irregularidades de saneamento.

Tratamento terciário, novos monitoramentos e estudos

Para o professor e biólogo Paulo Horta, coordenador do projeto Ecoando Sustentabilidade, que monitora as condições da Lagoa da Conceição, é fundamental avançar na ampliação do saneamento básico no bairro. “Por mais que tenhamos avançado, não foi na qualidade e velocidade suficientes. Ainda não temos rede para todo mundo”, ressalta.

Além da ampliação da rede de esgoto, Horta destaca a necessidade de monitorar as águas no fundo da laguna, por meio de boias que informem instantaneamente o nível de oxigênio da água.

“Sabemos só depois que os peixes morreram por falta de oxigênio. Os processos que levam à mortandade dos peixes começam no fundo, depois vêm para a superfície. Assim como o saneamento, nosso controle também está aquém. A Lagoa da Conceição precisa de um controle diário, ela está na UTI”, destaca. Com a nova tecnologia seria possível, por exemplo, realizar planos de manejo dos peixes, evitando novas mortes.

Conforme a Casan, desde o rompimento da lagoa artificial há melhorias em andamento. Cerca de R$ 6 milhões foram empenhados para otimizar o sistema que recebe o efluente tratado. Dentre as obras realizadas está a remoção do material lamo-arenoso do fundo da lagoa, o que auxilia o sistema a recuperar a capacidade de infiltração e a quantidade de esgoto que pode ser recebido.

Houve também a limpeza e manutenção da rede de drenagem pluvial, além da instalação de um mecanismo emergencial de bombeamento. O sistema “controla” o nível da lagoa de evapoinfiltração durante 24h.

Em setembro deste ano, UFSC, Fapesc e Casan firmaram um investimento de R$ 3,2 milhões em projetos que devem contribuir para o entendimento e o desenvolvimento de ações para recuperar a saúde da laguna e a qualidade de vida dos moradores da região (a Casan repassou R$ 2 milhões, e UFSC e Fapesc destinaram R$ 600 mil cada).

Fonte: ND Mais.

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