A água está presente em quase tudo o que consumimos – do café da manhã até a roupa que vestimos. Mas você já parou para pensar quanta água foi usada para produzir esses itens?
Esse é o ponto central da pegada hídrica, indicador que vem ganhando espaço nos debates sobre sustentabilidade, consumo consciente e mudanças climáticas.
A pegada hídrica mede o volume total de água doce utilizado, direta ou indiretamente, para produzir bens e serviços consumidos por uma pessoa, empresa ou país. Ela vai além da água que sai da torneira: inclui a água empregada na agricultura, na indústria e até na diluição de poluentes.
A pegada hídrica mede o volume total de água doce utilizado, direta ou indiretamente, para produzir bens e serviços consumidos por uma pessoa, empresa ou país. Ela vai além da água que sai da torneira: inclui a água empregada na agricultura, na indústria e até na diluição de poluentes.
De onde vem esse conceito?
O conceito foi criado pelo pesquisador holandês Arjen Hoekstra, que buscava uma forma de tornar visível o uso direto e indireto da água doce em diferentes processos. A ideia é simples: ao compreender quanta água foi necessária para produzir o que consumimos, conseguimos avaliar melhor os impactos dessas escolhas sobre os recursos hídricos.
“Com essa metodologia, é possível mapear onde e quando a água é utilizada e de que forma ela é apropriada para diferentes usos. Por isso, a pegada hídrica se tornou uma ferramenta importante para auxiliar na gestão dos recursos hídricos”, afirma Bruna Soldera, diretora do Instituto Água Sustentável.
O Brasil passou a contar com uma norma específica sobre o tema em 2017, que estabelece princípios, requisitos e diretrizes para orientar empresas e instituições públicas ou privadas a avaliar e reportar a pegada hídrica de seus produtos, processos ou operações.
Há diferentes tipos de pegada hídrica?
Sim, a pegada hídrica é classificada em três categorias, de acordo com a origem da água utilizada.
Essa divisão ajuda a compreender, de forma mais detalhada, como ocorre o consumo de água nas diversas atividades humanas e também como essas práticas podem impactar e poluir mananciais hídricos.
“É uma distinção importante porque mostra que nem todo consumo de água exerce a mesma pressão sobre rios e aquíferos – um ponto central para políticas públicas e para empresas”, afirma John James Loomis, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas).
As três categorias de pegada hídrica são:
- Pegada hídrica azul (água azul): corresponde à água proveniente de recursos hídricos subterrâneos ou em superfície e que são utilizadas em toda a cadeia de produção de produtos. A agricultura com irrigação, indústria e o uso doméstico de água podem ter uma pegada hídrica azul.
- Pegada hídrica verde (água verde): refere-se à água da chuva armazenada no solo, que não infiltra nos aquíferos nem escoa para os recursos hídricos superficiais, mas permanece disponível para o desenvolvimento das plantas. É relevante para produtos agrícolas.
- Pegada hídrica cinza (água cinza): definida como o volume de água doce necessário para diluir e assimilar cargas de poluentes até que se enquadrem nos padrões de qualidade estabelecidos pela legislação ambiental.
Como calcular sua pegada hídrica?
O cálculo da pegada hídrica considera todas as fases de um produto – da extração da matéria-prima até o descarte. Assim, um simples hambúrguer pode “custar” milhares de litros de água, levando em conta irrigação, produção, processamento e limpeza de equipamentos.
“A pegada hídrica é diferente do consumo direto de água, pois considera tanto o uso direto (em atividades como banho, lavar louça ou cozinhar) quanto o indireto (aquela água que não vemos, mas está embutida em produtos e serviços, já que foi utilizada em diferentes etapas da cadeia de produção e também sofreu alteração em sua qualidade)”, explica Bruna Soldera, diretora do Instituto Água Sustentável.
A pegada hídrica pode ser estimada de diferentes formas, dependendo do que se deseja medir. O foco pode estar em uma área geográfica, como um país, um estado ou uma bacia hidrográfica, em uma empresa ou até em um produto específico.
“Tudo depende do objetivo: entender o consumo de água de uma região inteira, o impacto de uma atividade econômica ou a quantidade de água necessária para produzir um item do nosso dia a dia”, afirma Bruna Soldera.
Quando se fala em pegada hídrica nacional, por exemplo, o cálculo considera a soma de toda a água usada para manter o funcionamento de sistemas e produzir bens e serviços em um país. Já a pegada hídrica de uma empresa mostra o volume total de água utilizado de forma direta e indireta para que ela opere. Nesse caso, o cálculo é dividido em duas partes:
Pegada hídrica operacional: representa a água consumida e poluída nos processos internos da empresa;
Pegada hídrica da cadeia produtiva: engloba toda a água usada e impactada na produção dos bens e serviços que ela consome.
Juntas, as duas pegadas revelam o verdadeiro alcance do uso da água dentro e fora dos muros da organização.
No caso dos produtos, a pegada hídrica mostra a quantidade total de água necessária ao longo de todas as etapas da produção, do início ao fim.
“Um exemplo clássico é o do café: produzir uma simples xícara pode exigir cerca de 130 litros de água, considerando desde o cultivo até o processamento dos grãos”, destaca Bruna.
Atualmente, para facilitar esses cálculos, existem calculadoras online onde é possível ter estimativa da sua pegada hídrica. A mais conhecida é a Water Footprint Network, idealizada pelo holandês Arjen Hoekstra em parceria com outros pesquisadores. “Essas ferramentas estimam a pegada hídrica a partir de dados de consumo doméstico (banhos, descargas, energia elétrica) e hábitos alimentares e de compra”, destaca Natalia Ghilardi-Lopes, professora do Centro de Ciências Naturais e Humanas da Universidade Federal do ABC.
Que hábitos mais impactam a pegada hídrica individual?
Natalia destaca que, historicamente, os hábitos que mais aumentam a pegada hídrica estão relacionados à alimentação, principalmente ao consumo de carne bovina, leite e derivados, além de alimentos ultraprocessados.
“A moda também é um vilão: uma única calça jeans pode demandar mais de 10 mil litros de água ao longo da cadeia produtiva, do cultivo do algodão ao tingimento”, afirma a professora da Universidade Federal do ABC.
Natalia cita ainda exemplos que revelam o impacto do setor têxtil: uma camiseta de algodão pode exigir cerca de 2,7 mil litros de água; um par de sapatos, 8 mil litros; e um quilo de algodão, 10 mil litros. “Esses números mostram como uma simples peça de roupa pode consumir volumes significativos”, diz.
Contudo, alguns hábitos também consomem grandes quantidades de água, mas passam despercebidos. É o caso do uso de energia elétrica — já que a geração, em grande parte oriunda de hidrelétricas no Brasil, demanda água —, e do descarte inadequado de resíduos, que aumenta a pegada hídrica cinza ao exigir mais água para a diluição de poluentes.
A pegada hídrica do Brasil é alta?
Pesquisadores ouvidos pelo Ecoa apontam que o Brasil possui uma pegada hídrica relativamente alta. Diferentemente de outros países, isso se deve principalmente ao perfil econômico e de consumo, já que grande parte da pegada hídrica brasileira vem da agricultura e da pecuária, responsáveis por mais da metade do uso de água doce no país.
Bruna Soldera, diretora do Instituto Água Sustentável, explica que, em média, dos 330 bilhões de metros cúbicos de pegada hídrica total do Brasil por ano: 9,09% correspondem à pegada hídrica cinza, 3,33% à pegada hídrica azul e 87,88% à pegada hídrica verde.
“O fato de a pegada hídrica verde ser maior está relacionado à forte atividade agrícola do país, sendo a produção de soja, milho e cana-de-açúcar os principais responsáveis por isso. Já no caso da pegada hídrica cinza, aquela água utilizada para assimilar as cargas de poluentes até que se enquadrem nos padrões de qualidade definidos pela legislação ambiental, os setores doméstico e industrial têm papel de destaque”.
O que falta para a pegada hídrica ser popular como o crédito de carbono?
Natalia Ghilardi-Lopes, professora da Universidade Federal do ABC, acredita que a pegada hídrica tem potencial para se tornar tão popular quanto os créditos de carbono, mas ainda não alcançou a simplicidade, a padronização e a força simbólica da pegada de carbono.
“O crédito de carbono ganhou força porque foi incorporado ao mercado financeiro e às políticas públicas globais”, observa.
Segundo John James Loomis, professor da FGV, enquanto o carbono se acumula globalmente, a água é um recurso local, cujo impacto varia muito de acordo com a bacia hidrográfica.
“Isso dificulta criar uma métrica universal e facilmente comunicável, como vários estudos críticos apontam”.
Para avançar, segundo Loomis, seria necessário padronizar métodos de cálculo e comunicação, de modo que os consumidores compreendam as diferenças regionais; aumentar a transparência das empresas sobre o uso da água ao longo da cadeia produtiva; e tornar mais visível a relação entre escolhas cotidianas e crises hídricas reais, como as enfrentadas em São Paulo, no Nordeste e no Pantanal nos últimos anos.
Já Bruna Soldera, diretora do Instituto Água Sustentável, defende a criação de um “crédito de água”. Para ela, assim como os créditos de carbono, um mercado de créditos hídricos poderia incentivar práticas de conservação, reuso e eficiência, recompensando quem protege os recursos naturais e penalizando o desperdício.
“Ao atribuir valor econômico à água, o sistema estimula governos, empresas e cidadãos a reconhecer sua importância e a agir coletivamente pela sua preservação. Mais do que um instrumento econômico, o crédito de água pode ser um catalisador para a conscientização e a inovação, promovendo investimentos em infraestrutura hídrica e soluções sustentáveis para enfrentar a crise global da água”, defende Soldera.
Fonte: UOL