Crise Saúde Global
Por José Gomes Temporão
O anúncio da Butantan-DV, nova vacina contra a dengue do Instituto Butantan, é grande motivo de orgulho para os brasileiros. Como a primeira vacina inteiramente desenvolvida e produzida no Brasil, ela ajudará tanto a proteger a vida de milhões de cidadãos quanto a impulsionar a economia nacional.
Esse é o Complexo Econômico Industrial da Saúde (CEIS) em ação e uma demonstração clara de como o mercado interno pode desempenhar um papel estratégico no desenvolvimento nacional e no fortalecimento do SUS.
Esse mesmo modelo que conjuga inovação, uso do poder de compra do Estado e parcerias entre laboratórios públicos e empresas privadas pode, e deve, ser usado também para desenvolver e produzir outras tecnologias para a saúde. Destaco entre elas os antibióticos.
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A resistência a medicamentos já é uma das doenças mais letais no mundo e está associada a quase 5 milhões de mortes por ano. E pesquisas recentes sugerem que a crise global de resistência aos antimicrobianos (RAM) chegou a um ponto crítico. A expectativa do projeto Global Research on Antimicrobial Resistance (GRAM) é de que o número de mortes por RAM aumente drasticamente, crescendo em 70% até 2050, com algumas das maiores taxas de mortalidade previstas para a América Latina.
Sem dúvida, adotar esse modelo para desenvolver e fabricar novos antibióticos trará um conjunto diferente de desafios em relação às vacinas. A boa notícia é que o Brasil tem tudo à sua disposição para superá-los. Com o maior setor farmacêutico da América Latina e do Caribe – e um dos maiores do mundo -, não há justificativa razoável para que o país siga sem capacidade produtiva não apenas para formular seus próprios antibióticos, mas também para fabricar os insumos farmacêuticos ativos (IFA), área estratégica ainda fortemente atrelada ao mercado externo. Atualmente, segundo levantamento da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi), 100% dos antibióticos produzidos no Brasil dependem de IFA importado. Vale lembrar: até o fim da década de 1980, o país produzia cerca de 50% dos insumos usados na fabricação de medicamentos.
Crise Saúde Global
Além disso, temos um histórico robusto de inovação em pesquisa e desenvolvimento (P&D), graças à nossa notável rede de laboratórios públicos, como Farmanguinhos e Biomanguinhos da Fundação Osvaldo Cruz, a Fundação para o Remédio Popular, o próprio Butantan, entre muitas referências nacionais.
Essa infraestrutura é um componente essencial para ampliar a capacidade de desenvolver novos antibióticos eficazes contra infecções resistentes. E, como vimos com a Butantan-DV, o Brasil possui sistemas robustos de vigilância epidemiológica e estrutura regulatória, ambos essenciais para apoiar e viabilizar esse nível de inovação.
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RAM
Outro diferencial do país é o tamanho considerável de nossa população. Com mais de 210 milhões de cidadãos – com grande variabilidade genética e perfis sociodemográficos – em um território diverso e continental e carga relativamente alta de doenças relacionadas à RAM, é possível realizar estudos clínicos de saúde pública em populações relevantes.
Os estudos conduzidos com populações maiores tendem a produzir resultados mais robustos e a contribuir para o desenvolvimento de antibióticos adequados para os tipos certos de infecções resistentes a medicamentos, sobretudo para os grupos populacionais prioritários, inclusive aqueles que, de outra forma, poderiam ser excluídos dos estudos, como recémnascidos, mulheres e pessoas com comorbidades.
Em São Paulo, por exemplo, apenas três tipos de infecção – pneumonia, infecções do trato urinário e infecções da corrente sanguínea – representaram quase 10% das 24 milhões de internações em hospitais públicos e por mais de meio milhão de mortes ao longo de 10 anos. Além de um custo de R$ 4,7 bilhões aos cofres públicos, essas infecções impactam a vida e a produtividade dos brasileiros, com uma estimativa de 9,2 milhões de anos de vida perdidos, conforme dados do Grupo de Análise em Infecções e Antimicrobianos (Gaia) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Saúde
Assim como muitos países, o Brasil tem um histórico de uso excessivo e inapropriado de antibióticos, o que contribuiu para o aumento e a disseminação da RAM. Medidas efetivas vêm sendo tomadas para corrigir esse problema – como a proibição da venda sem receita, limitação do uso na pecuária, programas de gerenciamento hospitalar e o Plano de Ação Nacional de Prevenção e Controle da RAM no Âmbito da Uma Só Saúde (PAN-BR).
E, embora o uso excessivo e inapropriado continue sendo uma preocupação, hoje o acesso inadequado a antibióticos mata mais do que a resistência aos medicamentos propriamente dita. De fato, o último relatório GRAM indica que ampliar o acesso aos antibióticos adequados terá, indiscutivelmente, o maior impacto no combate à RAM nos próximos anos. Ou seja, o acesso equitativo não apenas pode evitar a morte de mais de 50 milhões de pessoas em todo o mundo até 2050, como também pode ajudar a conter o avanço de infecções resistentes a medicamentos.
Ao colaborar com organizações sem fins lucrativos como a GARDP – movidas pelas necessidades de saúde pública e pela equidade – o Brasil pode não apenas atender às suas futuras demandas por antibióticos, mas também se posicionar como um dos principais fornecedores globais, fortalecendo sua resiliência sanitária e seu papel estratégico no enfrentamento da resistência aos antimicrobianos.
Fonte: Valor.