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‘O pior é que nós vamos nos acostumando’: Moradores de La Paz vivem há um mês sem água

É a pior crise em 25 anos, que agora chegou também à vizinha cidade de El Alto. Nas principais represas que abastecem a capital, os volumes de água são menores que 10%.

Foi a pedido exatamente da Bolívia que, em julho de 2010, as Nações Unidas reconheceram o acesso à água como direito humano básico.

A BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, acompanhou a rotina das pessoas afetadas pelo problema.

Torneiras viraram ‘enfeite’
Numa sexta-feira, às 5h, a temperatura em La Paz não chega a três graus. Antes do nascer do sol, Marco lava o rosto com a água de uma jarra e um balde, aquecida com um dispositivo elétrico portátil.

Ele não tem tempo de fazer a barba porque precisa chegar cedo à casa da mãe e ajudá-la a carregar pesados baldes cheios do produto mais procurado há um mês em La Paz.

Grande parte da cidade está há mais de um mês vivendo com um dramático racionamento de água potável. Ou seja: casos como o de Marco e sua mãe se repetem em milhares de casas.

Construída entre 3,3 mil e 4,1 mil metros acima do nível do mar, La Paz é a capital mais alta do mundo. Entre os mais de cem bairros atingidos, estão os maiores da cidade.

No começo, o corte da água foi parcial, mas se tornou mais e mais drástico à medida que os dias foram passando.

Há bairros em que as torneiras praticamente se tornaram um enfeite.

“E sabe o que é pior?”, diz Marco, um engenheiro de 32 anos. “O mais terrível é que estamos nos acostumando.”

Uma crise para todos
Uma das particularidades da crise da água na capital da Bolívia é que os bairros onde tradicionalmente vivem as pessoas com mais recursos também são os mais castigados pelo racionamento.

Isso porque as represas que forneciam água potável a essas áreas foram as que tiveram a vazão reduzida mais drasticamente pela pior seca enfrentada pela Bolívia em três décadas.

Calacoto, na zona sul, é um bairro cheio de hotéis, residências diplomáticas, embaixadas, restaurantes sofisticados e shoppings.

Em uma análise simples, a impressão é de que a vida segue normalmente nas suas ruas com casas modernas e prédios altos.

Mas basta entrar em um restaurante para sentir o impacto da crise.

“Antes de sair de casa para almoçar em algum restaurante, lavo as mãos com a água que recebo do caminhão-pipa”, diz Daniela, que mora em um bairro vizinho a Calacoto e trabalha em uma loja de material esportivo.

O motivo: em alguns dos estabelecimentos gastronômicos mais exclusivos e caros da cidade, os banheiros estão fechados.

Outros disfarçam o racionamento deixando tigelas ou vasilhas finas de porcelana ou cristal com água suficiente para apenas uma pessoa lavar as mãos.

Fuga de estrangeiros
Embora não digam abertamente, representantes diplomáticos e funcionários de agências de cooperação internacional confirmaram à BBC Mundo que começam a deixar La Paz com suas famílias.

Alguns, por exemplo, mandaram os filhos de volta à Europa para passar as festas de fim de ano com os avós.

Outros anteciparam as férias para voltar aos países de origem durante a crise hídrica.

A grande maioria das residências diplomáticas de La Paz fica nos bairros castigados pelo racionamento.

A crise da água em La Paz se deve à pior seca enfrentada pela Bolívia nas últimas décadas, causada pelo fenômeno El Niño – que aquece as águas do Oceano Pacífico – e pela mudança climática.

Especialistas no assunto, como Dirk Hoffmann, disseram à BBC Mundo que a Bolívia não tomou as medidas necessárias para enfrentar a falta ‘água, embora ela tivesse sido “anunciada desde 2009”.

“Durante quase 20 anos não se fez nada para construir novas redes de abastecimento, enquanto nesse mesmo período a população dobrou”, disse ele.

Outros motivos destacados são a má gestão pelas autoridades e os megaprojetos mineiros que, além de deixarem em todo o país os rios e margens contaminadas, utilizam milhões de litros de água por dia sem compensação alguma.

WhatsApp e baldes
O governo boliviano anunciou novos pontos de captação de água para La Paz desde o início da crise.

Vizinhos organizam grupos de WhatsApp para alertar uns aos outros quando um caminhão-pipa se aproxima do bairro.

Não importa o horário: quando um dos veículos – escoltados por militares – chega, as filas se formam imediatamente.

Baldes, latões de tinta, jarras, garrafões e mesmo velhos barris de rum ou vinho são úteis.

Qualquer coisa que sirva para armazenar a água que será usada não só na higiene pessoal, mas também para cozinhar e lavar as roupas.

Mas não foi só o WhatsApp que se tornou uma ferramenta vital.

Depois de declarar estado de emergência por causa da seca, o governo boliviano e a Empresa Pública Social de Águas e Saneamento Básico (EPSAS) utilizam redes sociais como Twitter e Facebook para receber denúncias de falta de distribuição e pedidos de água dos bairros atingidos.

É difícil acreditar, mas às vezes apenas um comentário feito no Facebook pode mobilizar um comboio de caminhões-tanques de água.

Até hospitais são afetados
Quem mais sofre com a crise hídrica em La Paz são os setores mais carentes da população.

Marco precisa ir à casa da mãe porque ela não consegue caminhar quatro ou cinco quarteirões carregando baldes com mais de 20 litros de água.

Mas nas filas diante dos caminhões-pipas não são poucos os idosos que esperam – às vezes, não há ninguém para ajudar.

Em alguns locais, cada pessoa pode encher apenas dois baldes, que vão ter que durar de quatro a cinco dias.

Nos primeiros dias de dezembro, doentes renais em suas cadeiras de rodas protestaram diante do principal hospital público de La Paz.

O motivo: a crise causou a suspensão temporária das hemodiálises, um tratamento caro nos hospitais privados.

O governo, por sua vez, informou que priorizou o fornecimento de água para hospitais, clínicas e casas de repouso.

As autoridades bolivianas disseram que 30 milhões de litros foram distribuídos na cidade nos últimos 20 dias.

Risco à saúde
O medo de colocar a saúde em risco ao ingerir a água dos caminhões-pipas tornou a versão engarrafada um produto cada vez mais valorizado.

A EPSAS afirma que a água distribuída pode ser usada para o consumo, mas sua cor amarelada tem provocado desconfiança – as crianças são as mais vulneráveis a infecções.

Com isso, muitas famílias têm cozinhado com água engarrafada – mas nem todas podem pagar por ela especialmente agora, que o preço dobrou em vários pontos da cidade.

Uma cena é comum em dias de chuva: as pessoas recolhem a água em todos os recipientes possíveis e imagináveis, como se fosse um presente do céu. Não importa se são pobres ou ricas.

O mal-estar é claro, e em qualquer reunião social ou café a crise hídrica é assunto inevitável.

Mas o movimento na cidade não diminuiu, apesar da situação.

A expectativa é que a crise supere seu pior momento nos próximos dias.

Fonte: BBC

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