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Comunidades do sertão do Ceará ficam sem água potável devido a obras do Banco Mundial

“Põe na boca essa água aí”, desafia Paulo Sérgio de Moraes Alves, 34 anos, presidente da Isca (Instituição Sócio-Comunitária da Agrovila), a associação dos moradores da agrovila Gameleira. Obedeço e a língua enrola. A água é sal puro. “Agora você imagina ficar tomando banho com essa água, macho. A pele seca, cheia de ferida. Tem criança que já ficou doente”, protesta Paulo Sérgio.

A revolta é maior porque foi por causa de uma obra de combate à seca que pessoas como Paulo Sérgio perderam, além de suas casas, o acesso à água potável e à luz que tinham antes do reassentamento. Há quase quatro anos — período que coincide com uma seca histórica no Ceará — os moradores foram expulsos de casa e reassentados para dar lugar ao açude Gameleira, localizado na divisa entre as áreas rurais dos municípios de Trairi, Itapipoca e Tururu — distante 150 km da capital, Fortaleza. “Antigamente, a gente morava na beira do rio. Mesmo na época da seca, se o rio secava, dava pra cavar cacimba. Dava pra se adaptar. Aqui a gente tem que ficar usando essa água salgada”, explica Paulo Sérgio.

O Gameleira foi um dos cinco açudes construídos na segunda etapa do Progerirh (Projeto de Gerenciamento Integrado de Recursos Hídricos do Estado do Ceará), uma parceria do governo cearense com o Banco Mundial, que há mais de 20 anos realizam juntos programas de combate à seca no Estado. Na primeira etapa do Progerirh, em 2000, o Banco Mundial emprestou US$ 136 milhões ao governo do Ceará. Nessa segunda etapa, iniciada em 2008, o banco destinou US$ 103 milhões para o programa.

Para a construção do açude Gameleira, foram R$ 40 milhões (R$ 18 milhões financiados pelo Banco Mundial e o restante, pelo Estado do Ceará, segundo o governo estadual). Das 180 famílias atingidas pela obra, de acordo com dados da SRH (Secretaria de Recursos Hídricos), 91 moravam no local e perderam pelo menos uma parte de suas terras — muitos perderam toda a propriedade. Quase quatro anos depois, a única água a que eles têm acesso é a do poço que o morador me fez provar.

Há um dessalinizador, mas só é possível tirar o sal de cerca de 25% da água utilizada por dia. “Senão, acaba com o motorzinho do poço, que já tá dando problema”, diz Paulo Sérgio. A comunidade foi obrigada a estabelecer um rodízio: cada família tem direito a 36 litros de água para seu consumo diário (segundo a ONU, a quantidade necessária para uma pessoa é 110 litros por dia) e há famílias com mais de dez pessoas. A valiosa água sem sal é usada para beber e cozinhar. O resto é feito com a água salgada mesmo. “O sal gasta o sabão todo. Vai uma barra de sabão aqui pra lavar uma roupa. Essa é a água que tem pra gente”, diz a agricultora Maria Gorete Rodrigues de Souza, de 48 anos.

As condições oferecidas à comunidade para o reassentamento na agrovila de Gameleira ferem frontalmente as salvaguardas obrigatórias do Banco Mundial, estabelecidas para reduzir impactos socioambientais e econômicos sobre as comunidades atingidas pelos projetos de desenvolvimento que financia. Entre elas está a Diretriz Operacional 4.30, criada em 1º de junho de 1990, que exige “atenção especial aos grupos mais pobres que serão reassentados” e determina: “Todo reassentamento involuntário deve ser concebido e executado como um programa de desenvolvimento que proporcione à população reassentada oportunidades e recursos suficientes para participar dos benefícios do projeto”.

A mesma diretriz especifica que o reassentamento “deve garantir recursos suficientes para alojamento, infraestrutura (abastecimento de água, caminhos de acesso) e serviços sociais (escolas, centros de atenção sanitária)”. De acordo com levantamento feito pelo ICIJ, entre 2004 e 2013 pelo menos 10.094 brasileiros sofreram impactos negativos de projetos financiados pelo Banco Mundial, seja por terem perdido suas casas, terras ou empregos. Especificamente nos projetos de combate à seca no Ceará implementados desde o início dos anos 1990, as obras financiadas pelo banco atingiram 4.625 famílias. E, como provam os reassentados de Gameleira, nem sempre as salvaguardas foram cumpridas.

O açude Gameleira e o Banco Mundial no Ceará

Desde os anos 1990, o Banco Mundial financia programas no Ceará como o Prourb (Projeto de Desenvolvimento Urbano e Gestão de Recursos Hídricos), seguido pelas duas etapas do Progerirh nas décadas seguintes. O objetivo é fomentar o desenvolvimento da infraestrutura hídrica no Ceará (com a construção de açudes, adutoras e eixos de integração entre bacias hidrográficas) e a formação de um corpo técnico para gerir o sistema, que deve destinar água ao abastecimento humano e ao desenvolvimento econômico.

Os projetos se ancoram — ou deveriam se ancorar — não apenas nas obras, mas na eficiência de gestão de recursos hídricos, como explica o professor de engenharia hidráulica e ambiental da Universidade Federal do Ceará Francisco Assis de Souza Filho, ex-gerente de Planejamento Técnico da Cogerh (Companhia de Gestão de Recursos Hídricos) e responsável pela coordenação técnica dos projetos do Banco Mundial na primeira fase do Progerirh, e em programas mais antigos como o Prourb e Proágua. “O investimento mais intensivo é na construção de infraestrutura. Mas também há uma lógica constante de promoção do gerenciamento dos recursos hídricos, principalmente a partir da criação de um arcabouço institucional, jurídico e organizacional. O que transparece nos projetos do Banco Mundial é que, no longo prazo, essa capacidade institucional de gerir os recursos hídricos é que vai fazer a diferença”, afirma. Segundo ele, o Ceará é hoje um modelo de gestão hídrica no semiárido. Uma afirmação dificilmente aceitável pelos moradores de Gameleira.

A lei brasileira que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (9.433, de 8 de janeiro de 1997) estabelece que: “em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais”. Mas é a falta de democratização do acesso à água o principal problema da gestão de recursos hídricos no Ceará, segundo ONGs e movimentos sociais locais. Marcos Vinicius Oliveira, presidente da ONG Esplar (Centro de Pesquisa e Assessoria), que desde 1974 atua no apoio à agroecologia e à agricultura familiar no Estado, explica: “A água para o agronegócio deveria ser sobretaxada, hoje ela é quase de graça. Os grandes reservatórios não deveriam ter sido feitos; deveriam ter sido feitos mais reservatórios médios ao longo da bacia para facilitar o acesso a essa água para as comunidades”.

O resultado é que “aqueles que efetivamente mais sofrem com a seca”, as famílias que moram em área rural e representam mais de 50% da população do Nordeste, não têm acesso à água, como afirma Cristina Nascimento, da ASA (Articulação pelo Semiárido Brasileiro), uma rede de organizações da sociedade civil. “A água está concentrada e não chega a esses lugares. Nós precisamos debater a democratização no acesso a essa água”, diz Cristina.

“A convivência com o semiárido demanda a garantia de água em essencial para as famílias que moram em áreas mais distantes, na zona rural. A cidade também precisa de água, mas nem sempre essas obras são pensadas de uma forma verdadeiramente planejada na perspectiva de chegar a todos”, ela explica, citando o caso do açude Gameleira, que fica no meio de uma área rural e deixou a população à míngua. “Esse açude foi concluído no ano de 2013, em plena seca, e estocou uma boa quantidade de água [que] está servindo para a área urbana de Itapipoca, o que também é importante. Mas ainda não tem um projeto executado – há a perspectiva de ter, mas não foi efetivado – de uma adutora que leve água para as famílias rurais. As obras precisam ser pensadas também nessa perspectiva das famílias que lá vivem”, diz.

Água encanada só no papel

Nem todos os moradores que hoje vivem na Gameleira foram reassentados na agrovila. Para lá foram as famílias mais pobres atingidas pelo açude: os agricultores que moravam em propriedades alheias sem benfeitorias (obras), ou com benfeitorias avaliadas em menos de R$ 5.000 pela SRH (o teto é R$ 12 mil no caso dos proprietários que tiveram mais de dois terços de seus terrenos alagados). A atenção especial “para os mais pobres”, porém, exigida pelas salvaguardas do Banco Mundial, não garantiu nem os direitos humanos essenciais desses moradores vizinhos à obra. Por sua vez, as obras do Gameleira ainda não foram totalmente concluídas, embora as primeiras famílias tenham sido transferidas em 2011 para a agrovila.

O Plano de Reassentamento da Barragem Gameleira previa, no capítulo 6.10, a construção de uma adutora com capacidade mínima de 30 mil litros para trazer água do açude para a agrovila, mas até hoje essa obra não foi realizada. A empresa I. C. Projetos e Construções foi escolhida por licitação para fazer a obra, ao custo de cerca de R$ 250 mil, mas os trabalhos de construção da adutora nem começaram ainda. Por isso, os moradores continuam dependendo do poço e, de vez em quando, se cotizam para fretar um caminhão-pipa. Mas aí dependem da boa vontade dos mandachuvas locais, como diz o morador Paulo Sérgio: “Tudo aqui a gente meio que depende de falar com alguém, de conhecer alguém. […] Se você chama um caminhão-pipa, às vezes você fica esperando dias pra ele chegar. Se você fala com um vereador, chega no mesmo dia”.

Há muitas outras decepções para os moradores expulsos pela obra financiada pelo Banco Mundial. O posto de saúde previsto para a agrovila não passa de uma carcaça de concreto, com cadeiras amontoadas, salas vazias e muita poeira; para conseguir atendimento médico, os moradores têm de ir de pau de arara à área urbana de Itapipoca, a 16 km dali. A coleta de lixo e a construção de áreas de lazer também não saíram do papel. “A agrovila do Açude Gameleira deverá transformar-se em um centro polarizador de serviços e de produção para a região”, diz o plano de reassentamento. Olhando em volta, tudo o que se vê é um conjunto habitacional pobre, com mais carências do que tinham os moradores antes da obra.

“Naturalmente os beneficiários do plano que optarem pelo reassentamento na Agrovila terão sua renda mensal bem mais elevada, de acordo com os planos de atividades econômicas propostos”, prometia o plano de reassentamento do açude Gameleira, que previa o cultivo de culturas temporárias (feijão, milho, melancia e melão) e permanentes (manga e goiaba) nos lotes agrícolas, além de piscicultura na área alagada do açude.

Nada disso virou realidade. Os agricultores continuam lutando com a seca para suas roças de subsistência e racionando a água que bebem.

“Se não tiver inverno [chuva], não tem nada feito. Por quê? A nossa água não veio, a que foi prometida que viria por adutora. A salgada do poço mata a plantação completamente. A doce ninguém pode comprar pra aguar um terreno e sai caro porque o terreno é de cinco hectares, né?”, explica a agricultora Expedita Fernandes de Souza, de 30 anos. Ela conta que, no início do ano passado, trouxe 1.500 pés de caju da sede da Ematerce (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Ceará), em Itapipoca e, com a seca, não sobraram nem 30 pés. Por isso, os moradores exigem da SRH a instalação de uma caixa-d’água à beira dos lotes agrícolas para compensar a perda dos terrenos irrigados naturalmente que cultivavam antes da remoção. “Aqui a gente só trabalha se tiver os invernos. Lá onde eu morava, não faltava serviço pro povo não”, diz o agricultor Valmir Carlos da Silva.

 

 

Fonte: R7

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