saneamento basico

O erro da Lei Complementar nº 141

André Castro Carvalho

A Lei Complementar (LC) nº 141, de 2012, que regulamenta as despesas mínimas obrigatórias com saúde nos termos do artigo 198, parágrafo 3º, da Constituição Federal, é fruto do Projeto de Lei do Senado Federal (PLS) nº 121, de 2007, do então senador Tião Viana (PT-AC), que resgata o PLS nº 35, de 2002, também de sua autoria. O fato é que a LC foi a consequência jurídica de uma interpretação restritiva que limitou a expansão do saneamento básico no Brasil – e que está se perpetuando com o passar dos anos.

Até a edição da LC, cada entidade da Federação contabilizava seus gastos com despesas mínimas obrigatórias para saúde de uma maneira específica, dentro da respectiva autonomia federativa. Com o advento da lei, uma restrição passou a ser relevante: as ações de saneamento básico. A LC, no artigo 3º, limita a contabilização, como despesas públicas em saúde, às ações referentes a saneamento básico de domicílios ou de pequenas comunidades, desde que sejam aprovadas pelo Conselho de Saúde do ente da Federação financiador, e às ações de saneamento básico dos distritos sanitários especiais indígenas e de comunidades remanescentes de quilombos. Ademais, o artigo 4º exclui as ações de saneamento realizadas com taxas ou preços públicos.

O Conselho Nacional de Saúde (CNS) tinha uma interpretação semelhante à LC veiculada desde 2003, por meio da Resolução nº 322, de 2003, mas que não tinha força normativa de lei – e, portanto, outros entes federativos não consideravam essa interpretação. A quinta diretriz da resolução considerava como despesa em saúde somente aquelas que fossem de responsabilidade específica do setor, não se confundindo com despesas relacionadas a “outras políticas públicas” que tenham atuação sobre determinantes sociais e econômicos, ainda que com reflexos sobre a saúde. E a sexta e sétima diretrizes corroboram essa linha, incluindo como despesas em saneamento básico as ações próprias de pequenas comunidades ou em nível domiciliar, ou aos distritos sanitários especiais indígenas, ou outras ações de saneamento a critério do CNS, excluindo as intervenções realizadas com recursos provenientes de taxas ou tarifas. É daí que saiu a inspiração normativa para a restrição contida na LC.

Será necessária uma reviravolta legislativa para que saneamento básico passe a ser visto de forma integrada à saúde

Ocorre que a Constituição Federal, no artigo 200, estabelece como competência do Sistema Único de Saúde (SUS) a participação da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico, tendo a Lei nº 8.080, de 1990, estabelecido, no seu artigo 3º, que a saúde tem como determinante e condicionante, entre outros, as políticas públicas de saneamento básico. Por essa razão é que no artigo 6º, II, da mesma lei, há a mesma previsão constitucional comentada.

Em síntese: a Constituição não delimita quais ações de saneamento básico estão sob a gestão do SUS, visto que a lógica constitucional é bem simples e salutar – qualquer intervenção em saneamento básico está relacionada com a gestão em saúde. São políticas públicas convergentes e que apresentam um efeito multiplicador inegável: investindo-se na infraestrutura de saneamento básico, há um ganho indireto na saúde – o qual, por vezes, pode ser mais robusto que o gasto direto neste setor.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou há alguns anos uma pesquisa em que um dólar investido em saneamento básico traz uma economia de três a cinco dólares em saúde. Os ganhos econômicos e sociais são inegáveis: as pessoas ficam menos doentes, faltam menos ao trabalho e à escola, melhora-se o IDH da região que recebe o investimento, e há atração de investimentos e desenvolvimento de atividades pela iniciativa privada. Entretanto, ao se analisar a atual intervenção do Estado em saneamento e saúde no Brasil, percebe-se como a legislação, ao invés de integrá-los, passou a segregá-los em prejuízo à sociedade. Com essa interpretação míope cristalizada pela LC, prioriza-se a faceta da despesa pública sem qualquer tipo de avaliação quanto à sua eficiência e economicidade, a qual poderia ser mais bem atingida se fosse apropriada em ações e intervenções mais amplas em saneamento básico – em especial, para novos investimentos públicos no setor que venham a beneficiar a população de baixa renda.

A impressão que se tem é que, pela lógica “fria” da LC, não importa se as pessoas continuam ficando doentes por más condições de saneamento básico, mas sim que as despesas em saúde sejam gastas irrestritamente naqueles percentuais definidos. Em outras palavras: melhor o tratamento do que a profilaxia. É a velha tendência jurídica brasileira de controlar procedimentos ao invés de resultados nas políticas públicas.

Atentos a essa idiossincrasia que a interpretação pelo CNS estava trazendo, alguns Estados e municípios da Federação procuraram interpretar a norma de uma forma mais racional e que se coadunasse aos postulados constitucionais mencionados (até a edição da LC, quando isso era possível). No entanto, por vezes essa tentativa de interpretação foi encarada como “desvio” de recursos da saúde por algumas Cortes de Contas, desconstruindo qualquer criatividade que o bom gestor público pudesse ter em sua unidade federativa.

Enquanto isso, o Brasil continua, por exemplo, apresentando índices de tratamento de esgoto em comparação ao PIB per capita totalmente fora da curva da normalidade (ao lado da Índia), de acordo com o Banco Mundial. Será necessária uma nova reviravolta legislativa para que saneamento básico passe a ser visto de forma integrada à saúde, abrindo-se margem para investimentos públicos no setor.

André Castro Carvalho é mestre e doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP) e sócio de Queiroz Cavalcanti Advocacia.

Últimas Notícias: