Universalização do Saneamento nos Estados
Embora vigente há pouco mais de dois anos e meio, o novo Marco Legal do Saneamento já mostra a que veio: provocar uma mudança na regulamentação capaz de garantir investimentos privados para a área e, assim, suprir o gap de décadas do qual o poder público não deu conta para universalizar os serviços de fornecimento de água e esgoto aos brasileiros. Com a nova lei, começou uma corrida nos estados para buscar modelos de concessão, parcerias público-privadas ou privatizações que consigam se aproximar da meta de, até 2033, garantir que 99% da população seja atendida com água tratada e 90%, com coleta e tratamento de esgoto.
Se há um indicador que evidencia a disparidade entre as realidades brasileiras, este é o saneamento básico.
E é ele também que mostra o quanto ainda é preciso avançar nessa área para alcançar níveis satisfatórios de qualidade de vida para a população. Não à toa, o Brasil traçou uma batalha contra o tempo para garantir que este serviço atinja melhores níveis, com a chegada do novo Marco Legal do setor, a Lei Federal 14.026, que começou a ser desenhada no governo Michel Temer (MDB) e foi sancionada em julho de 2020, na gestão Jair Bolsonaro (PL).
Mas há que se ressalvar: sem regulamentação correta, modelos adequadamente projetados de expansão dos serviços e contratos bem-feitos, nem investidores, nem a sociedade, têm vez nessa corrida. O que parece consensual, de todo modo, é que não dá mais para esperar. O Brasil atende 84,2% da população com rede de água e 55,8% com coleta e tratamento de esgoto, segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), de 2021. E este é um dado que, historicamente, evolui devagar. Para se ter uma ideia, em 2005, o percentual de brasileiros atendidos com água era de 81,7%, enquanto com esgoto, de 39,5%.
As diferenças por região também são gritantes. Enquanto no Sudeste do país 19,5% dos habitantes não têm acesso à coleta de esgoto, no Norte, o percentual é de 86,9%. De água tratada, o déficit de acesso é de 41,1% na região Norte, enquanto no Sudeste, de 8,7%. Os dados do SNIS e suas interpretações podem ser vistos em detalhes no estudo Benefícios Econômicos e Sociais da Expansão do Saneamento Brasileiro, publicado pelo Instituto Trata Brasil.
O que eles mostram é que, embora em algumas regiões do país o poder público tenha dado conta de construir serviços de saneamento adequado ao longo das últimas décadas, em outras, ele ficou muito aquém do necessário. “O Amapá, onde houve concessão completa de serviços de água e esgoto (à iniciativa privada), é o estado que tinha o menor volume de investimentos, com R$ 6 reais por ano por habitante. O Paraná, por exemplo, investe R$ 121”, compara a presidente-executiva do Trata Brasil, Luana Siewert Pretto.
O Brasil investe R$ 82 em saneamento básico por ano, em média, por habitante. Para atingir as metas do Marco Legal, precisará investir pelo menos R$ 200. “As companhias estão buscando esse recurso porque é muito investimento em um espaço curto de tempo”, complementa Luana.
Para o professor titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP), Claudio Lucinda, a soma de um antigo marco regulatório complicado à insuficiência de investimentos no setor, que cabiam até o início dos anos 2000 basicamente ao poder público, culminou em um déficit difícil de ser suprido somente por meio de recursos governamentais.
“É inevitável que o setor privado tome a frente no processo de investimentos que temos aqui”, avalia. “Mas deve ter combinado a isso mecanismos de regulação muito bem feitos. Porque há alguns desafios, como encontrar uma estrutura tarifária que permita ao setor privado se remunerar para investir e, ao mesmo tempo, manter os domicílios de renda mais baixa dentro da base”, ressalta.
Historicamente, as legislações mais abrangentes sobre o saneamento começaram na década de 1970, quando foi instituído o Plano Nacional de Saneamento (Planasa). Foi quando a responsabilidade sobre o serviço foi regionalizada, sob responsabilidade das companhias estaduais. Em alguns locais o desenvolvimento foi claro, a exemplo de estados como o Paraná e São Paulo, onde as companhias estaduais Sanepar e Sabesp, respectivamente, conseguiram chegar a 2020 com mais de 95% das populações alcançadas por rede de água (também conforme os dados do SNIS).
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Foi um passo importante para definir as atribuições do saneamento, mas insuficiente para garantir seu cumprimento. Ainda na década de 1980 o plano foi extinto, e uma nova regulamentação veio somente em 2007, quando promulgada a Lei 11.445, o primeiro Marco Legal do Saneamento, durante o segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A atualização de 2020 veio para dar novos contornos, flexibilizar a participação predominantemente pública nos serviços e estabelecer metas a serem atingidas.
E, com isso, gerou uma corrida nos governos para traçar planejamentos que atraiam investimentos privados no saneamento. “A partir dessa época (do primeiro marco legal) começou a haver uma liberalização maior para isso, mas até hoje existe uma dificuldade muito grande em muitos municípios de se estabelecer quem é o responsável por esses serviços”, lembra o professor da USP.
Daí a necessidade de estabelecer as regras do jogo do investimento. Um dos pontos do novo Marco Legal é a regionalização dos serviços. Ou seja, em vez de prever projetos que contemplem individualmente os municípios, o marco estabelece que as concessões devem abranger conjuntos de cidades. Para Luana Pretto, a medida funciona porque os estados formam blocos regionais, com cidades de portes variados, criando atratividade ao investidor e, ao mesmo tempo, alcance aos municípios. “É uma forma de se ganhar em escala, tanto de operação quanto de investimento. E, dessa forma, a cidade grande subsidia a pequena, que muitas vezes não tem a receita necessária e não atrairia o investidor”, explica.
Outro ponto no marco legal que estimula a corrida para buscar investimentos privados no saneamento é a diluição da obrigatoriedade da prestação do serviço por parte das companhias estaduais, permitindo a abertura para a concorrência privada. E, ainda, a centralização das diretrizes de regulamentação na Agência Nacional de Águas (ANA), como entidade reguladora do setor. Esta medida, em especial, garantiria segurança jurídica às empresas que entrarem na corrida pelas concessões, na visão da presidente-executiva da Trata Brasil.
“O país tem 84 agências infranacionais, que são municipais, estaduais ou intermunicipais. Cada uma delas tem uma regra a ser seguida e muitas vezes a governança não é bem estruturada. A partir do momento que há uma regulação estruturada, a regra do jogo é igual para todo mundo”, destaca.
Vale lembrar, no entanto, que tramita no Congresso uma medida provisória (1.154/2023) que discute a competência da ANA para editar normas de referência dos serviços públicos de saneamento. Mas, a despeito das pendências que a questão regulatória ainda enfrenta, os planos de quem busca investimentos privados no saneamento e quem tem capital para oferecer caminham. E rápido.
Modelos de investimento privado
Não é consenso que o novo Marco Legal do setor seja um indutor de privatizações, necessariamente. Especialistas concordam que ele é, de fato, um fomentador de investimentos privados no saneamento. Agora, quanto ao modelo de aporte privado adotado e sua abrangência, as possibilidades são variadas e dependem de fatores diversos, conforme preferências e necessidades de cada ente governamental.
De parcerias público-privadas (PPPs) a concessões parciais ou totais dos serviços, até a privatização com venda parcial ou total das ações do governo, diversos estados estão na corrida para conseguir recursos que justifiquem alcançar as metas de 2033.
E todos esses modelos vêm sendo utilizados ou estudados para os projetos de investimentos do setor. Além de financiador, o Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) estrutura projetos de infraestrutura, como o saneamento, desde o ano 2000. Entes públicos, como a União, estados e municípios, contratam o banco para estudar a situação local e desenvolver projetos de concessão, PPPs ou desestatizações, conforme as necessidades levantadas.
“Desenhamos os investimentos necessários e sugerimos um conjunto de cenários ao ente público. É PPP? Ou concessão pura, em que o ente público delega ao privado a possibilidade de explorar no longo prazo? Ou concessão parcial, em que o ente público retém algumas atividades e cabe ao privado as demais? Tem uma série de modelos previstos e oferecemos esse conjunto de cenários para que o cliente tome a decisão”, explica Luciene Machado, superintendente da Área de Estruturação de Projetos do BNDES.
Feita a opção, o banco elabora o edital para escolher o ator privado para desempenhar a tarefa, por meio de leilão. As concessões, em geral, se estendem por prazos que vão de 20 a 35 anos. Ao final do contrato, os ativos revertem ao poder público ou são objeto de nova licitação.
Opções dos estados
De 2020 para cá, a partir do novo Marco Legal, o BNDES teve um incremento significativo no número de projetos de estruturação contratados para concessões na área de saneamento. Neste meio tempo foram 12 projetos leiloados. Outros sete estão em estruturação, com três leilões previstos para 2023. Eles totalizam R$ 118 bilhões em investimentos estimados, sendo R$ 61 bilhões já contratados. De olho nos investimentos privados no saneamento, entre os estados que contrataram projetos de estruturação do banco e já concluíram seus processos de concessão estão Rio de Janeiro, Ceará, Espírito Santo e Amapá. Em andamento, estão projetos no Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Sergipe, Paraíba, Pará e Rondônia.
O Rio de Janeiro, por exemplo, optou por uma concessão parcial de quatro blocos de municípios, que deverão receber investimentos de R$ 27 bilhões em um prazo de 35 anos. A companhia estadual, Cedae, continua produzindo água tratada e à iniciativa privada cabe a distribuição da água e operação de toda a cadeia de esgoto. As licitações foram em 2021 e, atualmente, três empresas diferentes operam os blocos. “São contratos muito novos, mas já há investimentos bastante relevantes, em diferentes municípios. Este é um elemento importante: as obrigações são estabelecidas município a município. Para estar completamente aderente aos compromissos da concessão, os concessionários precisam mostrar todos os anos que atingiram os índices”, explica Luciene. Em 2020, 33% da população do Rio de Janeiro ainda não tinha acesso à rede de esgoto e outros 9,5%, à de água.
Modelo semelhante foi adotado em Alagoas. Já no Amapá houve concessão completa dos serviços de água a esgoto. No Ceará, foi feito modelo de PPP somente para os serviços de esgoto, assim como no Paraná, onde a Sanepar, estatal responsável pelo saneamento, anunciou o modelo em julho de 2022. No momento, a empresa elabora o edital de licitação com base nas análises colhidas em audiências e consultas públicas realizadas desde o segundo semestre do ano passado.
Dezesseis municípios da microrregião Centro-Litoral paranaense formam o bloco que deve receber investimentos de R$ 1,2 bilhão para coleta e tratamento de esgoto. Em nota, a Sanepar justifica a escolha do modelo de PPPs afirmando que, “por meio delas, é possível alcançar economia de gestão e aumentar a capacidade executiva de projetos e obras, especialmente quanto ao alcance de metas de universalização”.
O governador do Paraná, Carlos Massa Ratinho Junior (PSD), já havia informado que descartava como forma de atrair investimentos privados para o saneamento no estado o mesmo modelo adotado para o setor de energia. Recentemente, a Copel, Companhia Paranaense de Energia, teve aprovado o modelo corporation, de pulverização do controle acionário, em que o Estado vende parte das ações, mas se resguarda como detentor do poder de veto nas decisões dos demais acionistas, o chamado golden share.
Enquanto isso, os estados de São Paulo e Rio Grande do Sul caminham na direção de venda de ações, parcial ou total. Diferente do governador paranaense, em São Paulo, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) é defensor para a companhia de saneamento do estado, a Sabesp, do modelo corporation. Os estudos para aplicação do modelo de desestatização estariam entre as pautas prioritárias dos primeiros 100 dias de governo. Ambas, Sanepar e Sabesp, são sociedades de economia mista de capital aberto, em que o governo estadual é o acionista controlador.
No Rio Grande do Sul, embora tenha sido este também o modelo pensado inicialmente pelo governo Eduardo Leite (PSDB), houve mudança de planos em 2022. Segundo Marcelo Spilki, que era secretário executivo de Parcerias do estado à época e participou do processo de elaboração do projeto de desestatização, a ideia de pulverizar as ações foi abortada quando se percebeu que os investidores ficavam receosos com a aposta. “Fizemos mais de 80 reuniões com investidores daqui e de fora, entre Estados Unidos e Europa, e sentimos que muitos não gostam desse modelo porque preferem investir sabendo que terão o controle e poderão tocar a empresa do jeito deles”, conta.
Outra dificuldade foi que o valuation (avaliação do valor de mercado) feito para a empresa neste modelo não passou na aprovação do Tribunal de Contas do estado. “Quando se vende no modelo IPO (initial public offering, quando uma empresa oferece pela primeira vez suas ações aos investidores), justamente por não vender o controle, deixamos dinheiro na mesa. Quando se vende o controle, consegue-se remuneração maior”, explica.
A Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) teve então 100% das ações vendidas por R$ 4,1 bilhões em dezembro de 2022, e garantia de investimentos privados no saneamento de R$ 12 bilhões. No momento, o governo está na Justiça para tentar revogar liminares que impedem a assinatura do contrato e transferência das ações ao vencedor do leilão. Segundo o SNIS, até 2020, 66,5% da população do estado não tinha coleta e tratamento de esgoto e 13,3% , à rede de água.
Qual modelo é melhor?
Para o professor Claudio Lucinda, da FEA/USP, há que se levar em conta o quanto o estado pretende ter poder sobre a operação do sistema. Em estados com companhias mais estruturadas, com boa saúde financeira e bons índices de saneamento, nota-se uma preferência pelos modelos que colocam o ente público como detentor das regras. Daí as preferências por PPPs ou venda de ações golden share nesses locais. “A diferença é que, se for uma PPP, dentro do contrato se impõe restrições e, caso haja descumprimento, leva-se ao judiciário. Já no golden share o governo tem bastante explícito o poder de veto. Ou seja, antes de chegar ao Judiciário, ele pode vetar. É um pouco mais forte”, analisa.
Ele ressalta, entretanto, que o modelo adotado de investimentos privados para o saneamento depende não apenas de questões econômicas, mas também políticas. “Se o assunto é politicamente sensível no âmbito da transferência da empresa ou serviço para o setor privado, parte-se para um modelo mais restritivo”, afirma.
Já Luana Pretto, da Trata Brasil, acredita que a questão está mais pautada no tamanho do desafio. “Nos estados em que falta pouco para chegar nas metas, uma PPP resolve. Agora, quando se tem um problema do início ao fim para resolver, não”, diferencia.
Ela destaca ainda que, no caso das PPPs, as contratadas não têm relacionamento direto com a população – o que fortalece o nome e a imagem das companhias estaduais. “É a companhia que cobra a tarifa e repassa o valor para a empresa que venceu a PPP. Não tem o intermediário na relação com o cliente”, explica. Diferente da concessão, em que passa a aparecer o nome do prestador do serviço.
Mas e as tarifas?
Sobre as tarifas, para Luana, tanto faz quem toca os serviços: elas levarão em conta custo de operação e investimentos. “É um mercado regulado, independentemente de ser público ou privado.” Além disso, as tarifas sociais seguem em voga. “O desafio é caracterizar bem o perfil do usuário que pode ter direito, com base não no consumo, mas em critérios objetivos, como renda e relação com áreas de habitação com problemas. E combinar isso com ações para lidar com inadimplência e renegociação de dívidas. Porque as regiões onde há mais inadimplência são também onde há as maiores perdas de água, em razão das ligações irregulares”, lembra Claudio Lucinda.
O que a superintendente do BNDES, Luciene Machado, acredita de fato é que não se pode perder o timing que o novo Marco Legal trouxe para atrair investimentos e resolver de vez a questão do saneamento no Brasil. “Ter um conjunto de projetos oferecidos ao mercado com frequência é interessante para atrair investidores. E na esteira do mercado investidor engajado vêm o mercado de capitais, os bancos investidores e outros provedores de crédito público. Porque no saneamento a gente está falando de um esforço de universalização muito grande. São de R$ 700 a R$ 800 bilhões para chegar lá. E só com a execução desses investimentos de forma mais veloz é que os indicadores tendam a se sensibilizar de forma mais consistente”, finaliza.
Fonte: Gazeta do Povo.