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Os investimentos em infraestrutura e o capitalismo sem riscos

Do Le Monde Diplomatique
por Regina Camargo
A determinação de patamares de retorno elevados para os investimentos em infraestrutura afeta a formação de expectativas para a taxa de juros da economia, impedindo que ela se reduza a médio e longo prazo. Esse estilo dos bancos é bastante conhecido da sociedade, que paga a conta do nosso capitalismo sem riscos
Os inegáveis gargalos na infraestrutura impõem fortes restrições a um novo salto do desenvolvimento socioeconômico do país, reduzem a possibilidade de o país retomar taxas mais vigorosas de crescimento do PIB e impactam a qualidade de vida da população. De acordo com estudos do Banco Mundial,1 seriam necessários, para acelerar o desenvolvimento do país e fazê-lo transitar para padrões mais elevados de renda, os seguintes aportes em infraestrutura:
• Um investimento de 3% do PIB somente para manter o estoque de capital existente, acompanhar o crescimento populacional e universalizar, em vinte anos, os serviços de água, saneamento e eletricidade.
• Um investimento de 4% a 6% do PIB, por vinte anos, para alcançar o padrão de infraestrutura existente hoje nos países do Leste asiático ou acompanhar a modernização que vem ocorrendo na China.
• Um investimento de 5% a 7% do PIB, por vinte anos, para alcançar um novo patamar, quantitativo e qualitativo, de desenvolvimento  socioeconômico.
Para enfrentar tais desafios, em 15 de agosto de 2012, o governo federal lançou a primeira etapa de um novo pacote de concessões para incentivar os investimentos em infraestrutura no país, no âmbito do Programa de Investimento em Logística. Nessa etapa está prevista a aplicação de R$ 133 bilhões, nos próximos 25 anos, na reforma e construção de rodovias federais e ferrovias. Desse total, mais da metade – R$ 79,5 bilhões – será investida nos próximos cinco anos. Os investimentos em rodovias somarão R$ 42 bilhões e em ferrovias, R$ 91 bilhões.
No caso das rodovias, serão concedidos nove trechos que compreendem 7,5 mil quilômetros, e o modelo de concessão prevê a seleção das concessionárias pelo menor valor da tarifa de pedágio, que só poderá começar a ser cobrada quando pelo menos 10% das obras estiverem concluídas.
Para as ferrovias, o modelo será o de parceria público-privada (PPP), no qual as empresas se responsabilizam pela construção, manutenção e operação, e o governo, por meio da Valec (empresa estatal do setor ferroviário, remanescente da Vale do Rio Doce, privatizada nos anos 1990), comprará toda a capacidade de transporte de cargas e a revenderá aos interessados, isto é, às empresas que queiram transportar sua produção por esse modal. O governo assumirá o risco da demanda por transporte ferroviário nos doze trechos concedidos, portanto, se a procura for menor que a capacidade instalada, o prejuízo será arcado pelo governo.
Nas ferrovias, o modelo de PPP assegura a fonte de financiamento dos projetos pela iniciativa privada, embora transfira ao governo os riscos do negócio, mas, no caso das rodovias, num primeiro momento, a questão ficou em aberto. De onde sairiam parte dos recursos para viabilizar o vultoso programa de investimentos, dadas as restrições ao investimento público impostas pela necessidade de gerar superávit primário – um dos pilares intocáveis da política macroeconômica – e pela limitação de recursos do BNDES?
Em outros períodos da história do país, o financiamento da infraestrutura foi viabilizado pelo endividamento interno direto e indireto, ou seja, por meio da expansão da dívida pública ou das próprias empresas, mas isso ocorreu num contexto internacional muito diferente do atual e teve graves impactos fiscais e no balanço de pagamentos. Por isso, não é desejável replicar tal estratégia.
Desde o anúncio do Programa de Investimento em Logística, em agosto de 2012, assistiu-se a uma intensa movimentação dos grupos de interesses potencialmente envolvidos com os projetos – empreiteiras nacionais e estrangeiras, bancos privados e públicos, fundos de pensão, consórcios internacionais de investidores.
Ao mesmo tempo, foi retomado o debate na mídia sobre a ineficiência da atuação do Estado na área de infraestrutura, apontando suas falhas congênitas, relacionadas essencialmente às incertezas do quadro legal e regulatório e à qualidade das instituições encarregadas de executar o investimento público, fortemente orientadas por motivações e condutas mais políticas que técnicas. Essas falhas inibiriam o chamado “espírito animal” da iniciativa privada do país, tornando-a avessa ao risco dos empreendimentos com longo prazo de retorno.
No caso específico dos bancos privados, a natureza de seu funding– composto basicamente por depósitos à vista de curto prazo do público – e as exigências determinadas pelas regras dos Acordos de Basileia, que são normas internacionais para o funcionamento dos bancos, especialmente após a crise de 2008-2009, imporiam fortes constrangimentos à participação dessas instituições no financiamento de longo prazo dos projetos de infraestrutura.
Outro fator que limitaria a alavancagem de recursos para o financiamento de projetos de infraestrutura seria a incipiência de nosso mercado de capitais, que não possui instrumentos adequados à mobilização de recursos na proporção requerida por esses projetos.
Quase oito meses após o lançamento do Programa de Investimento em Logística e dado o aparente desinteresse dos potenciais investidores privados nos projetos, o governo anunciou mudanças na taxa de retorno para os investidores e na Taxa Interna de Retorno (TIR) dos projetos, elevando-as. A taxa de retorno para os investidores saltou de iniciais 11% para 16% a 20%, e a TIR aumentou de 5,5% para 7,2%.
Além disso, o governo simplificou as garantias exigidas das concessionárias nos financiamentos feitos pelos bancos públicos e passou a exigir garantias distintas para cada fase do projeto. A partir do quinto ano das concessões, o retorno gerado pelos projetos (arrecadação de pedágios) será a única garantia do financiamento e no momento anterior ao início das obras os vencedores dos leilões de concessões terão de oferecer garantias correspondentes a apenas 20% do valor do projeto. Ademais, todos os projetos terão a cobertura da Agência Brasileira Gestora de Fundos e Garantias (ABGF), que responderá pela securitização dos chamados “riscos não gerenciáveis” dos projetos, e as concessionárias serão responsáveis por somente 20% dos riscos iniciais do empreendimento.
Por fim, os financiamentos serão bancados em até 70% pelo BNDES e terão prazo de 25 anos, com cinco anos de carência para o início da amortização. O custo dos financiamentos será a Taxa de Juros de Longo Prazo – TJLP – mais 2%, quando feito por bancos privados, e 1,5%, quando feito por bancos públicos.
A principal inovação, entretanto, dos atuais projetos de infraestrutura em transportes são os empréstimos sindicalizados, uma modalidade de financiamento que reúne um pool de bancos públicos e privados − nesse caso, BNDES, Itaú-Unibanco, Bradesco, Santander, BTG Pactual, JP Morgan, Bank of America, Safra, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, em que o BNDES entra com a maior parte dos recursos e os outros bancos complementam. O governo pretende que essa inovação se aplique a investimentos em outros segmentos, como energia elétrica, aeroportos e portos, de forma a viabilizar, a curto prazo, o volume de recursos necessários aos projetos em infraestrutura sem pressionar ainda mais o BNDES, que é praticamente a única fonte de financiamentos de longo prazo do país.
O acordo entre o governo e o pool de bancos foi selado em 12 de setembro e previu mecanismos que permitem às instituições financeiras “acomodar” em seus balanços operações de crédito bilionárias e de longo prazo sem colocar em risco o chamado Índice de Basileia, que é a relação entre o capital próprio do banco, o tamanho e o risco de sua carteira de crédito. Na nova modalidade de empréstimo sindicalizado, o BNDES entra com a maior parte do funding, mas os bancos arcam com o risco do crédito em seus balanços, ou seja, se o consórcio que tomou o empréstimo ficar inadimplente, os bancos terão de contabilizar esse prejuízo em seu passivo e, dado o volume bilionário das operações, haveria risco de comprometimento de seu capital próprio. Para arcar com esse risco, os bancos terão uma taxa de retorno mais elevada sobre os financiamentos, que será a TJLP mais 2%, como já comentado, além de pagarem spreads mais baixos ao BNDES pelas operações de repasse dos recursos aportados pela instituição.
Em seguida ao acordo entre o governo e os bancos, o presidente mundial do banco Santander, Emilio Botín, anunciou que a corporação destinará US$ 10 bilhões para o financiamento das concessões do Programa de Infraestrutura Logística. Na sequência, o Bradesco anunciou a captação do primeiro fundo de investimento voltado ao financiamento de projetos de infraestrutura, também conhecido como debêntures.
O governo aposta nesse programa de concessões para “destravar” a economia e elevar os investimentos e a taxa de crescimento do PIB nos próximos anos. Como estamos em ano pré-eleitoral, a retomada do crescimento econômico justifica a aceitação da lógica de que a infraestrutura é um negócio como qualquer outro, cujos investimentos requerem elevados retornos e garantias que praticamente eliminem o risco.
Pouca atenção parece estar sendo dada às consequências dessas novas modalidades de financiamento, principalmente em relação aos bancos privados, que estão cobrando retornos elevadíssimos – 7,2% –, quando a taxa internacional praticada nesse tipo de empreendimento não chega a 1%. A determinação de patamares de retorno elevados para os investimentos em infraestrutura afeta a formação de expectativas para a taxa de juros da economia, impedindo que ela se reduza a médio e longo prazos. Esse estilo de jogo dos bancos é bastante conhecido da sociedade, que acaba pagando a conta do nosso capitalismo sem riscos.
Outros aspectos que até agora não foram bem definidos em relação aos projetos de infraestrutura em logística são, entre outros, como será evitado o superfaturamento de obras e como será feita a fiscalização do cumprimento de cronogramas e dos impactos socioambientais dos empreendimentos, ou seja, como se evitará que os interesses privados – que miram acima de tudo a maior rentabilidade para seus negócios – suplantem os interesses do Estado e da sociedade.
Todos os cuidados estão sendo tomados para assegurar os investimentos nas condições mais vantajosas para bancos e empresas. Espera-se o mesmo zelo do governo para com a aplicação dos recursos, a qualidade das obras e seus benefícios para a sociedade.
Regina Camargo
Economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
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