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Segurança hídrica ou saneamento eficiente?

Os moradores da região sudeste do país atentaram-se recentemente para um fato: a água pode faltar! A crise hídrica, conforme designado pela grande mídia entre 2014 e 2015, aterrorizou as populações dos grandes centros urbanos do Sudeste. Uma conjunção de fatores desfavoráveis históricos e atuais, entre eles um período de estiagem prolongada e severa produziram a crise. Entretanto foi atribuída a este fator quase toda a responsabilidade sem um aprofundamento da verdadeira origem do problema.

Há de se iniciar a reflexão pelo modelo de desenvolvimento urbano que favorece a concentração populacional em poucas grandes cidades, cujos territórios têm uma limitação de recursos naturais disponíveis ao uso, dentre os quais está a água. Outro ponto é a visão utilitarista da água, que agregada à cultura da abundância hídrica brasileira, promove o uso sem critérios de eficiência ou sem uma visão sistêmica de como garantir a reposição da água para a sustentabilidade desses usos. Por fim, a despreocupação com o descarte nos rios, que, historicamente viraram local de lançamento do que não se deseja por perto, como o lixo ou o esgoto, deteriorando a qualidade das águas.

Pensando esta realidade em números temos: no Brasil 84,4% da população mora em área urbana, sendo que no Sudeste este percentual é 92,9 % (IBGE, 2010). O Sudeste representa 47% da demanda média total de abastecimento urbano de água no país (ANA, 2010) e trata apenas 45,7% do esgoto gerado (SISIS, 2014).

Ainda achamos que a falta de água foi só por falta de chuva?

Os números traduzem cenários: o setor de saneamento de um lado busca água de boa qualidade, mesmo que em locais distantes ao local de uso, com o objetivo de minimizar o custo do tratamento de água e garantir os padrões de potabilidade. Por outro, despreza o investimento em tratamento e lança os efluentes domésticos in natura ou com níveis de eficiência insuficientes para manutenção da qualidade da água compatível com os usos no território urbano.

Esta conta não vai fechar!

Já em 2010 a Agência Nacional de Águas- ANA havia publicado o Atlas do Abastecimento Urbano no Brasil que alertava que 46% das sedes municipais requeriam ampliação do seu sistema de abastecimento de água, sendo este percentual para o Sudeste de 39%. Nossos sistemas de abastecimento público, carentes de investimentos, demonstram sua obsolescência também nos índices de perda no sistema de distribuição que no Sudeste é em média 36,9% (Trata Brasil, 2013).

Em suma, temos um quadro de adensamento populacional em um território que possui uma alta e concentrada demanda de água, cujos sistemas de abastecimento são insuficientes e ineficazes e cujas águas se encontram poluídas pelo descarte de esgoto sem tratamento. Tudo isso aliado a deficiência de gestão pública, que por cultura brasileira não contempla o planejamento, colapsou o abastecimento em grandes cidades do Sudeste.

Como assegurar água para as atuais e futuras gerações?

A ONU conceitua segurança hídrica como “A capacidade de uma população de salvaguardar o acesso sustentável a quantidades adequadas de água de qualidade para garantir meios de sobrevivência, o bem estar humano, o desenvolvimento socioeconômico; para assegurar proteção contra poluição e desastres relacionados à água, e para preservação de ecossistemas em um clima de paz e estabilidade política”. (ONU,2013)

O conceito da ONU reflete o pensamento sistêmico da gestão das águas, que se preocupa com a quantidade de água, mas também com a sua qualidade, e entende a água como garantia de desenvolvimento social e econômico para o bem-estar humano. Como todos os recursos naturais a abordagem da sustentabilidade é cíclica, não se garante o uso caso não se preserve, se conserve, se trate e reponha ou restaure o recurso.

Esta visão integrada está distante da prática das políticas públicas Brasileiras na abordagem da água, que, ao contrário, compartimenta o problema e suas soluções. E em uma visão linear, não entende que o cuidado com a água é a garantia de sustentabilidade do abastecimento público e de desenvolvimento econômico e social de toda a população.

O que tivemos então, uma crise hídrica ou uma crise do setor de saneamento?

A resposta é simples: as duas coisas! A solução requer também uma visão integrada da água com o saneamento. O investimento em saneamento deve ser priorizado dentro do sistema de sustentabilidade hídrica. Planejar, executar e gerir de maneira integrada a política da água, desde a sua oferta até a demanda. Entender que planejar e investir em tratamento dos esgotos gerados nas cidades significa aumentar a oferta de água, uma vez que uma parcela de água que até então estava indisponível, por requisitos de qualidade, tornar-se-ão novamente disponíveis para os diversos usos. Ainda na gestão da oferta, o incentivo do aproveitamento de águas pluviais deve ser ampliado, além de apoiar o sistema de drenagem urbana, as experiências internacionais demonstram que a sua utilização diminui a demanda de água nova em cerca de 50%. Na gestão da demanda, incentivos ao uso eficiente de água deve se iniciar no combate às perdas no sistema de distribuição do próprio setor de saneamento e se estender por uma ampla mobilização da sociedade na conscientização do uso racional da água nas atividades cotidianas e no uso em escala.

Relacionar os aspectos da hidrologia com a saúde deve ser uma das prioridades e o desafio dos governos e de organizações relacionadas. Os cidadãos e o poder público devem se unir na defesa da água. Os investimentos em saneamento são investimentos em segurança hídrica. A crise não deve ser esquecida, mas deve oportunizar um novo ciclo de investimento no setor de saneamento.

Não faltou só chuva!

(*) Marília Melo ([email protected]) é Colunista de Plurale, colaborando com artigos sobre Sustentabilidade. É Engenheira Civil, mestre em Meio Ambiente, Saneamento e Recursos Hídricos pela UFMG e doutoranda em Recursos Hídricos pela UFRJ.

É a servidora do Instituto Mineiro de Gestão das Águas do governo de Minas, já foi diretora de monitoramento e fiscalização e Diretora Geral do IGAM, e secretária adjunta e atualmente é subsecretária de fiscalização ambiental e professora universitária.

Fonte: Plurale

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