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O Rio Francisco está envelhecendo

Conta a tradição que nas proximidades da Serra da Canastra, em Minas Gerais, havia uma tribo indígena na qual vivia uma bela mulher chamada Irati. Era noiva de um grande guerreiro. Certo dia ele precisou partir para uma grande guerra que aconteceria no norte. Os guerreiros da tribo de Irati eram tantos que seus passos afundaram a terra e eles morreram engolidos pelo seu grande sulco. A bela Irati então chorou em abundância até os últimos dias de sua vida. Suas lágrimas  correram para o grande sulco e depois seguiram por muitas léguas até serem derramadas no Oceano Atlântico. Quando ali chegaram estava formado o leito completo do Rio São Francisco. (Lenda sobre o surgimento do Rio São Francisco).

Suas nascentes surgem nas Terras das Alterosas. A mais importante delas localiza-se no Parque Nacional da Serra da Canastra, no centro-oeste de Minas Gerais. Fontes de águas cristalinas formando quedas-d’água de incomum beleza, uma dádiva do Criador! A Cachoeira das Rolinhas, três fontes de águas, a mais alta da Canastra, com 300 metros, despenca livre lá de cima. No período chuvoso brota uma quarta cascata, a Cachoeira Seca. Primeiro manancial dos seus recursos hídricos surgindo das alturas!

Mineiro de nascimento e alma, brasileiro solidário integrando regiões diversas em sua biodiversidade. Aos poucos forma o seu importante vale. Pacientemente suas águas superam acentuadas ou sinuosas curvas. Tranquilizam-se em alguns trechos, muitos deles navegáveis. Às vezes formam corredeiras, cataratas ou cavam desfiladeiros em suas margens aprofundando o seu leito. São os Cânions, transformando aquelas regiões em belezas naturais estimulando o interesse pelo turismo.

Nasce nas alturas, forma a maior bacia hidrográfica totalmente brasileira, numa área de 643.781km², 8% do território nacional, abrangendo 540 municípios, nos estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e recebe afluentes do estão de Goiás e do Distrito Federal. Deságua no Oceano Atlântico após percorrer 2.863km.

Américo Vespúcio chegou à sua foz em 04 de outubro de 1501, dia das comemorações de São Francisco de Assis, por isso, Rio São Francisco. Os índios habitavam as proximidades de sua foz e o chamavam Opará, “Rio Mar”. A mata, a caatinga desconhecida e as tribos ferozes impediam aos colonizadores penetrarem as florestas.

Mais tarde, por suas águas, o gado do Nordeste foi conduzido à região de Minas Gerais, então denominado “Rio dos Currais”.

No final do Sec. XVII, Fernão Dias Paes Leme, descobre ouro em Minas Gerais. Tem início o ciclo do ouro. O Rio das Velhas e o Rio São Francisco são utilizados como caminho natural para o litoral. Águas acima transportavam mercadorias, rios abaixo traziam ouro. “Rio da Integração Nacional”.

No Baixo São Francisco escravos fugitivos dos engenhos formaram uma verdadeira república negra, foco de resistência armada de escravos ligados ao Quilombo dos Palmares. Destruída em 20 de dezembro de 1695 pelo Reino de Portugal. Um sonho de liberdade transformado em pesadelo!

A Carta Régia de 1701, com o objetivo de combater o contrabando do ouro em suas águas proibia – “Quaisquer comunicações daquela parte dos sertões baianos com as minas paulistas em sertões mineiros”.

Com a descoberta de ouro em Goiás, em 1720, por Bartolomeu Bueno da Silva, Anhanguera, o Alto São Francisco torna-se rota para o Brasil Central intensificando o seu povoamento.

Os extremos, superior e inferior de sua bacia hidrográfica apresentam bons índices pluviométricos.

Os cursos médio e submédio atravessam áreas de clima bastante seco. Cerca de 70% do seu escoamento é gerado por Minas Gerais mas a área inserida é de 37% da área total. Penetrando na zona sertaneja semiárida é intensa a evaporação pela baixa pluviosidade e os seus afluentes temporários da margem direita terem seus volumes de águas diminuídos, mantém-se perene, graças ao mecanismo de retroalimentação proveniente do Alto curso e dos seus afluentes do centro de Minas Gerais e oeste da Bahia.

Originário da Mata Atlântica conquista o Cerrado. Ainda no Norte de Minas Gerais suas águas adentra à Terra Prometida, a Caatinga ou o Semiárido – único sistema ambiental exclusivamente brasileiro, ocupando uma área de 10% do território nacional, abrigando uma população de mais de 25 milhões de habitantes. Alcança mansamente a Bahia, Caatinga adentro, sentindo-se o mais baiano dos mineiros.

Sem as águas do Rio São Francisco, a região da Caatinga beneficiada por elas seria um deserto, sem qualquer possibilidade de vida. Hoje são 120 mil hectares em seu vale, abençoados por águas organizadas, obedecendo criterioso horário, em quantidades e qualidades ideais, caindo como chuvas vindas das nuvens! Preparada a terra, as sementes selecionadas, proteção das ações danosas das pragas, as plantas ordenadas, enfileiradas, em Oasis verdes de vida retribuem com farta colheita! É a agricultura irrigada pelas suas águas!

O potencial energético de suas águas é de pouco mais de 26.000MW, correspondendo a 10% do total brasileiro. Já foi instalado cerca de metade do seu potencial, sendo 95% dele consumido no Nordeste.

Pelas suas águas navegaram idéias de liberdade, desde os primeiros dias, depois transformadas em ações pelos mais letrados – Liberdade Ainda Que Tardia. Sufocadas com extrema violência física e moral. Para todos a prisão, alguns o degredo em terras distantes e as saudades em versos, para o líder a morte e o esquartejamento!

Através suas cataratas  ainda ouvimos os sonhos da liberdade tardia – O não saber, a insegurança gerando mais violência, o transporte para o trabalho e a volta para casa, administração dos bens comuns, a enfermidade nos serviços de saúde, a violência infantil! Igualdade Ainda Que Muito Tardia!

Colhidas por raízes mais aprofundadas na terra, as águas são armazenadas em caules protegidos, clorofilados, cascas espessas, impedindo a ação da luz solar, folhas em forma de espinhos, não permitindo sua utilização por animais sedentos! O mandacaru, o xiquexique e o xiquexique-do-sertão, suas flores de poucas horas ou semanas, polinizadas por insetos e aves noturnas, suas sementes alimentam os animais silvestres e os pássaros. Contrastam com árvores de poucas folhas e a terra vermelha, seca, pedregosa. Saúdam “As Grandes Águas”, mesmo à distancia, fiéis parceiras delas, única opção para alimentação dos animais sempre sedentos e famintos!

A Abelhas produtoras de mel e polinizadoras de centenas de diferentes flores, em todas as cores e incontáveis matizes, suaves perfumes, formam a base da vida, produzindo frutos em toda a cadeia alimentar. As Bromélias com suas flores… As árvores mais altas, de poucas folhas, assistem lá das alturas, as menores, desfolhadas, troncos e galhos finos, retorcidos, dançando uma adaptação do Xaxado, é o Balé da Caatinga, comemorando as muitas águas, trazendo vida para o semiárido.

Os ribeirinho – Os Pescadores, os Barqueiros, os Agricultores, os Contadores de Lendas, os Cantores Repentistas, os Poetas populares cordelistas, as Parteiras, as Rezadeiras, os Compositores e Cantores (Violeiros), os Ceramistas, os Entalhadores das carrancas das embarcações, os Guias turísticos, os Técnicos das hidrelétricas, os Sertanejos, os Vaqueiros… Todos numa explosão de fé, em orações, palavras, gestos, melodias, obras de arte, versos, danças, manifestam o seu agradecimento ao Criador pelas suas águas Franciscanas chegadas dos cimos ou mesmo dos Céus!

Os insetos, os répteis, os batráquios (estes dos varjões da Caatinga)… Os pássaros, especialmente as ararinhas azuis… Escondidas, assustadas, silenciosas, agradecendo a oportunidade da vida, mesmo em extinção!

O caracará sobrevoando, desassossegando, com sua plumagem alvinegra, bico e garras afiadas, levando preocupações por onde é visto. Agradece águas fartas possibilitando sua sobrevivência. Os animais silvestres numa busca incessante de água e alimentos. Os animais domésticos, combalidos, couro e osso com seus pelos sem brilho, entristecidos, desesperançados. Aguardam a morte! Esperam por suas águas em promessas nunca lembradas!

“Pela primeira vez na história a nascente do Rio São Francisco, situada no Parque Nacional da Serra da Canastra, em Minas Gerais está completamente seca”. (Grande Imprensa do Brasil, 23/09/014).”Da nascente à Foz do Rio vem diminuindo sua vazão, comprometendo a quantidade e a qualidade das águas, as atividades econômicas e inviabilizando os seus usos múltiplos”. (Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, 30/09/014).

No Alto São Francisco e no Rio das Velhas, predominaram o ouro e o diamante, agora o minério. Grandes indústrias, importantes cidades enfim, o progresso sem fim… Na luta entre o Homem e a Natureza vence sempre o egoísmo.

O Rio São Francisco é a trágica imagem do Rio que agoniza – Suas nascentes destruídas, a contaminação dos seus afluentes por esgotos lançados em suas águas, os desmatamentos das matas ciliares, o assoreamento dos leitos de sua Bacia Hidrográfica, o despejo de toneladas de agrotóxicos em suas águas, pastagens para rebanhos de gado, descaso com os resíduos industriais…

A ideia de irrigar parte do semiárido com suas águas surgiu em 1847, pelo então Imperador D. Pedro II, para tornarem  perenes rios temporários. O projeto de transposição do Rio São Francisco envolve 56 metros cúbicos de água por segundo, quase 9% da menor vasão média mensal, para as bacias dos rios dos Estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Paraíba, num total de 700km de extensão. Uns são contra – “Primeiro curar o doente, o Rio São Francisco, depois fazer a transposição de suas águas”. “A água será retirada de regiões que a sua demanda para uso humano e a dessedentação animal é maior que a demanda da região de destino”. Outros são favoráveis – “A quantidade de água retirada representa 9% da média mensal da vazão e a região atendida justificam as obras, tanto social quanto economicamente”. Enquanto isso mais de 60% das obras foram executadas.

Várias as suas denominações – “Rio Mar”, “Rio dos Currais”, “Rio da Integração Nacional”. Com intimidades de amigos o chamamos “Velho Chico”. Não sou “Velho Chico”, sou sim o “Chico Velho”! Estou envelhecendo! Sem as minhas águas a região da Caatinga seria um deserto sem qualquer possibilidade de vida! Por isso minhas lágrimas correm copiosas por rugas surgidas em meu rosto envelhecido! Como os meus afluentes conduzindo diminuídas águas por minha Bacia Hidrográfica pedindo socorro! Estou vivendo o início do meu fim! As lágrimas de Irati eram de saudades do seu amado. Foram transformadas em lenda. As minhas simbolizam o meu desespero. Se eu viver os habitantes do meu vale viverão; se ficar doente todos eles adoecerão; se eu morrer, todos eles morrerão. Mas tenho esperanças… Quem sabe um dia não solicitarei mais socorro ao homem em súplicas de desalento? Talvez a lenda da minha salvação… Um dia, um rio nascido na Serra da Canastra, em Minas Gerais, estava em agonia… Pediu socorro ao homem, foi atendido, voltou à vida… A lenda de um grande rio sobrevivente ao progresso…

 

Fonte: Diário da Manhã

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