saneamento basico

Avanços e desafios da MP 844 / 2018 do saneamento

A MP pode elevar investimentos em saneamento no país, mas as novas atribuições da ANA são polêmicas

Por: Renata Meireles e Lucas Van de Bilt Schiozer

Passados mais de 10 anos da edição da Lei Federal nº 11.445/2007, que estabeleceu as diretrizes nacionais para o saneamento básico, quase 17 % dos brasileiros não têm acesso aos serviços de abastecimento de água e apenas 51,9 % têm acesso a esgotamento sanitário, conforme dados de 2016.

Para além de retratar a precariedade em que parte significativa da população brasileira ainda vive, esses números distanciam-se consideravelmente das metas estipuladas pelo Plano Nacional de Saneamento Básico – PLANSAB, elaborado pelo Ministério das Cidades e aprovado em 2013. De acordo com o PLANSAB, 93 % dos domicílios brasileiros deveriam contar, ainda em 2018, com abastecimento de água e, 76 % com esgotamento sanitário. Ou seja, é possível afirmar, com grau quase matemático de certeza, que essa meta não será atingida nos próximos cinco meses. No longo prazo, o PLANSAB estabeleceu que esses serviços devam abranger 99 % e 92 % dos domicílios, respectivamente.

As metas traçadas parecem, à primeira vista, adequadas, uma vez que traduzem um patamar mínimo, em termos de infraestrutura e de serviços, a ser disponibilizado pelo Estado à população. Contudo, estima-se que para que tais metas sejam cumpridas sejam necessários investimentos da ordem de 268,1 bilhões de reais até 2033, o equivalente a mais de R$ 15 bilhões por ano. São valores deveras distantes do que se tem investido, ainda que considerados os aumentos verificados em investimentos no setor nos últimos anos ( em 2006 foram investidos R$ 4 bilhões contra R$ 12 bilhões em 2016 ).

O aporte do investimento necessário se mostra ainda mais tormentoso diante do cenário atual de crise fiscal e tendo em vista que a maior parte dos recursos investidos em saneamento básico são oriundos de empresas ligadas ao Governo Federal, em especial a Caixa Econômica Federal, com recursos provenientes do Orçamento da União e o BNDES, com recursos do FGTS.

Diante desse cenário, umas das intenções do Governo Federal com a edição da MP 844 é justamente incentivar o aumento da participação da iniciativa privada no setor de saneamento básico. Ao contrário de outros setores de infraestrutura no Brasil, como energia e logística, o setor privado ainda tem baixa participação no segmento, cujas principais prestadoras continuam sendo as empresas estaduais.

A alta concentração dos serviços nas empresas estaduais de saneamento básico, aliás, é herança do Plano Nacional de Saneamento, o PLANASA, editado pelo Governo Federal na década de 70. No âmbito do PLANASA, o governo federal financiava e regulava os serviços de saneamento básico, que eram prestados pelas empresas estaduais mediante a celebração de contratos com os municípios.

Setor privado

A despeito de o setor privado deter a concessão plena em apenas 2 % dos municípios, sua participação no total de investimentos no setor cresceu significativamente após a edição da Lei 11.445 / 2017, alcançando 20 % em 2015. Ainda assim, o aporte de investimentos privados enfrenta dificuldades, em grande parte atribuído à falta de capacitação dos municípios. Na maioria dos casos, os municípios são incapazes até mesmo de elaborar seus planos municipais de saneamento – motivo pelo qual o prazo de elaboração foi prorrogado para 2019 pelo Decreto 9.254 / 2017 – o que dirá regular os serviços prestados por meio de entidade reguladora, conforme preconiza a lei 11.445 / 2007.

Aliás, insta enfatizar que a competência para prestação e regulação dos serviços de saneamento básico continua sendo municipal, a teor do que já reconheceu o Supremo Tribunal Federal, STF, no âmbito das ADIs nº 2.340-3 / SC e 2.077 / BA, propostas frente a dispositivos que atribuíam aos Estados a competência para prestação dos serviços de saneamento básico. Em síntese, concluiu a Corte tratar-se de assunto de interesse local, sendo por isso os municípios competentes para organizar e prestá-los, diretamente ou mediante delegação, conforme o artigo 30, V, da Constituição Federal. Para as regiões metropolitanas, excepcionalmente, aplicam-se regras próprias, a teor do decidido no âmbito da ADI nº 1.842 / RJ e observados os dispositivos do Estatuto da Metrópole, publicado supervenientemente à decisão do STF.

Assim, observado o marco do setor, cada município continua a deter prerrogativa para editar normas aplicáveis em seu âmbito bem como determinar qual será a entidade responsável por fiscalizar e regular os serviços, podendo inclusive delegar essa tarefa, conforme admitido pela Lei 11.445 / 2007. Nada diferente do que afirmou a própria MP 844 / 2018, em dispositivo que modificou a Lei 11.445 / 2007 para expressamente reconhecer a competência municipal no novo artigo 8-A.

A despeito de expressamente reconhecer a competência municipal, a Medida Provisória nº 844/2018, contudo, traz consigo algum debate sobre a atribuição de competência no setor, ao instituir a Agência Nacional de Águas, a ANA, como entidade competente para instituição de normas de referência nacionais para regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico. Conforme a exposição de motivos da norma, de autoria do Ministério das Cidades, o intuito da medida é mitigar a insegurança jurídica gerada pela multiplicidade de atores do setor e o complexo marco regulatório.

As normas de referência nacional a serem editadas pela ANA contemplam temas relacionados aos aspectos comercial e técnico dos serviços, como padrões de qualidade e eficiência, regulação tarifária, padronização de instrumentos negociais ( especificando matriz de riscos e manutenção do equilíbrio econômico-financeiro ), contabilidade regulatória e redução progressiva de perda de água. Em suma, a ANA, a par das atividades relacionadas à implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, passa a ser uma espécie de “super entidade nacional de referência em matéria de saneamento básico”.

O primeiro desafio do Governo no que toca à MP 844 / 2018, portanto, será justamente provar que essa nova atribuição conferida à ANA não esbarra na distribuição constitucional de competências, já que algumas vozes se levantam no sentido da inconstitucionalidade da Medida Provisória por justamente esvaziar as competências do Município em matéria de saneamento. Em nota de repúdio, a Associação Brasileira de Agências de Regulação argumenta que a MP 844 / 2018 representa uma violação à autonomia dos entes subnacionais e de suas competências, manifestando que irá tomar todas as medidas necessárias para combatê-la.

Assim, é fundamental que tais normas de referência sejam efetivamente apenas indicativas e propositivas, e não peremptórias. Sobre o assunto, interessa notar que a despeito de MP não prever sanção para os municípios que não aderirem às normas de referência – o que, aliás, não poderia mesmo -, condiciona a transferência de recursos oriundos da União ou geridos por órgãos ou entidades da administração pública federal, como a CAIXA e o BNDES, ao cumprimento das normas editadas pela ANA. Trata-se de mecanismo de indução da aderência dos demais entes federativos às políticas do Governo Federal, conforme já praticado em outros setores dependentes de financiamento do governo central, como saúde e habitação.

Sobre o ponto, insta anotar que a lei 11.445 / 2007 já condicionava a alocação de recursos federais aos demais entes, seja a título de transferências ou financiamento, à observância de princípios e objetivos encartados naquele diploma, além do atendimento a índices mínimos de desempenho e eficiência e eficácia na prestação de serviços, a teor do que se observava da redação original do artigo 50. A esses requisitos, somavam-se aqueles do artigo 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal, no tocante às transferências voluntárias. Contudo, a MP 844, ao introduzir a observância às regras de referência nacionais para regulação dos serviços como requisito para obtenção dos recursos federais acaba, sem dúvida alguma, por introduzir elemento inusitado e polêmico.

Ainda no bojo das mudanças introduzidas pela MP 844/2018, a ANA também passa a desempenhar outras funções relevantes no setor, em especial: (i) atuação como mediadora e árbitra, em caso de conflitos envolvendo os municípios, suas agências reguladoras e os prestadores dos serviços de saneamento básico; (ii) avaliação do impacto regulatório e do cumprimento das normas de referência por ela editadas; (iii) elaboração de estudos, guias e manuais para o desenvolvimento das melhores práticas de regulação; e (iv) promoção à capacitação das entidades regulatórias subnacionais.

Em síntese, além de outras alterações ruidosas, a MP 844 / 2018 criou um novo braço de atuação da ANA, que, convertida a Lei, passará a ter papel relevante no setor de saneamento básico, sobrepondo-se às entidades reguladoras subnacionais. Contudo, qualquer previsão acerca do sucesso ou insucesso da atuação da agência na elaboração das normas de referência e na “padronização regulatória” com eventual melhoria dos custos de transação para os agentes – como pretende o Governo, ex vi da exposição de motivos – é exercício de futurologia, visto que a MP agregou ao sistema de saneamento um órgão que não tem histórico de atuação no setor. Por outro lado, é quase certo que o primeiro teste de fogo ao qual terá  que se submeter a Medida Provisória será o crivo de sua constitucionalidade pelo Judiciário, que poderá possivelmente traçar os limites de atuação da Agência. Estaria o setor à mercê de novas decisões judiciais paradigmáticas, a exemplo daquelas já aqui citadas ? Por ora, resta aguardar e torcer para que seja gestado um ambiente institucional e regulatório apto a reverter os índices apresentados no inicio deste artigo com a maior brevidade possível.

renata 

Renata Meireles

Mestre em Direito do Estado pela USP, advogada em SP, sócia de Rhein Schirato, Meireles & Caiado Advogados

 

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Lucas Van de Bilt Schiozer

Advogado em São Paulo, associado de Rhein Schirato, Meireles & Caiado Advogados

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