Tribunal tornou ilegal aterros em área de preservação, onde estão 80% deles; Código Florestal permite
Dezesseis capitais brasileiras —inclusive São Paulo e Rio de Janeiro— terão que encontrar novo destino para seu lixo por determinação do STF (Supremo Tribunal Federal).
Numa decisão de fevereiro, que empresas do setor levaram alguns meses para entender e dimensionar, o STF proibiu a construção de aterros sanitários em áreas de proteção permanente, as chamadas APPs.
Essa proibição ocorreu por caminhos indiretos. Na prática, o tribunal decidiu que os empreendimentos destinados à gestão de resíduos sólidos não são mais de utilidade pública. Ocorre que até quatro meses atrás, os aterros eram classificados como de interesse social.
Pelo fato de os aterros terem essa prerrogativa, cerca de 80% deles ocupam, ainda que parcialmente, zonas de preservação ambiental. No estado de São Paulo, todos os aterros sanitários funcionam em APPs.
Segundo a Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo), são 369 unidades no estado operando 39,9 mil toneladas de resíduos por dia.
Para o engenheiro geotécnico Luís Sérgio Akira Kaimoto, a “morfologia” do Brasil, com sua vasta bacia hidrográfica, ajuda a explicar a concentração de aterros em APPs. Consultor do Banco Mundial e do Ibama (instituição pública responsável pela regulação e pesquisa ambiental) , Kaimoto afirma ainda que 16 das 26 capitais do país, entre elas Belo Horizonte e Salvador, contam com aterros situados em áreas de preservação.
“A repercussão [dessa decisão] será inviabilizar a gestão de cerca de 85% de todos os resíduos gerados por essas capitais”, afirma.
Segundo a Amlurb (Autoridade Municipal de Limpeza Urbana), diariamente, são produzidas 21 mil toneladas de lixo em São Paulo, sendo 11,8 mil transportadas aos aterros.
Diretor de Controle e Licenciamento Ambiental da Cetesb, Geraldo do Amaral Filho afirma que a decisão do STF vai “tornar muito difícil o encontro de áreas com superfície suficiente para a deposição de resíduos”.
Os especialistas ainda desconhecem a amplitude da decisão. Como o acórdão, a cargo do ministro Luiz Fux, ainda não foi publicado, temem que não se aplique apenas aos futuros empreendimento, mas às instalações em funcionamento. “Se recair sobre os existentes, os aterros serão obrigados a parar de funcionar”, diz Kaimoto, atribuindo a decisão do STF a um engano de interpretação.
Presidente do Sindicato Nacional das Empresas de Limpeza Urbana, Marcio Matheus atribui a decisão do STF à confusão entre os conceitos de gestão de resíduos sólidos e lixão. Na sua opinião, houve um equívoco no calor da votação pelo fato de a matéria ser extremamente técnica.
“Lixão é ilegal, é o descarte em qualquer lugar sem cuidado ou sem técnica para dar a destinação adequada do lixo ou preservar o meio ambiente. É um crime. A gestão de resíduos é o oposto”, disse Matheus, para quem, sem um ajuste no texto final do STF, há o risco de os aterros serem considerados ilegais.
Na sessão em julgaram inconstitucional a classificação de utilidade pública para os aterros, prevista no novo Código Florestal, ministros chegaram a confundir aterro sanitário com lixão a céu aberto.
Enquanto Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes defendiam a manutenção do status de interesse público, a presidente do tribunal, Cármen Lúcia, e o ministro Dias Toffoli repetiam que o saneamento não estava em debate. Mas os lixões.
Gestão de resíduos
No julgamento, Moraes afirmou que “afastar como de interesse público a gestão de resíduos para efeitos ambientais vai ser o retorno do que ocorria até o código florestal” e a volta dos aterros clandestinos.
Quando Gilmar se manifestou, chamando a decisão de desastrosa porque só existe tratamento de resíduos nas áreas de águas, foi interrompido por Toffoli: “O saneamento não está sendo declarado inconstitucional”, disse Toffoli.
Cármen Lúcia interveio, afirmando que só a gestão de resíduos estava em questão. “O saneamento não foi questionado”, disse. Toffoli acrescentou: “É. Os resíduos sólidos, o resíduos sólidos é lixão, o saneamento não …”
Por oito votos a três, o tribunal deferiu as ações de inconstitucionalidade apresentadas pelo PSOL, com endosso de ambientalistas, e pela Procuradoria-Geral da República. Com isso, a implantação de aterros se tornou ilegal.
Secretário de Serviços na gestão Haddad, o ex-deputado Simão Pedro, também critica a decisão.
“Pela minha experiência como gestor da política de resíduos sólidos da Capital paulista, vejo essa decisão como muito ruim. Os aterros sanitários são equipamentos que dialogam com as boas práticas de tratamento adequado dos resíduos e não vejo contradição na sua construção com a necessidade da preservação ambiental. A médio e longo prazo temos que investir pesadamente em novas rotas tecnológicas com a reciclagem com centrais mecanizadas e ecoparques, mas os aterros continuarão sendo necessários”, diz.
Armadilha
Coordenador de resíduos orgânicos da gestão Haddad, o engenheiro agrônomo Antonio Storel Júnior afirma que as dificuldades hoje impostas à construção de aterros sanitários não nascem da decisão do STF. Mas do alto custo do empreendimento, que pode superar R$ 250 milhões.
Segundo ele, a crise fiscal inviabiliza não só a construção de novos aterros. O licenciamento, a logística e o gasto para conservação do terreno após o encerramento das atividades também pesam para os cofres públicos.
Especialista em compostagem, o ambientalista explica que a curta vida útil de aterro que sobrevive até que seja atingida sua capacidade de armazenamento— exige que os novos aterros sejam construídos em lugares cada vez mais distantes, encarecendo os custos para transporte dos rejeitos. O lixo da cidade de Ubatuba é, por exemplo, descartado em Tremembé.
“O aterro sanitário é uma armadilha”, critica.
Além disso, é preciso esperar por mais de 50 anos até que o terreno ocupado por aterro esteja apto para sediar um parque.
Para ampliar a vida útil dos aterros, Storel propõe que os rejeitos sejam levados aos aterros somente após uma triagem domiciliar em que o lixo seria distribuído em três sacolas. Lixo orgânico, que representa mais de 50% do produzido no país, passaria por um processo de compostagem sem necessidade de transporte.
Os recicláveis, que correspondem 35% do total, seriam submetidos a outro processo. E só os 17% restantes iriam para o aterro.
Usando São Francisco e Milão como exemplos, o ambientalista diz que a implantação desse sistema consome cerca de cinco anos.