saneamento basico

O programa de aceleração do crescimento no estado da Bahia e os desafios da universalização do saneamento básico

Resumo

A universalização do saneamento básico no Brasil é um desafio diante do deficit e das desigualdades de acesso. A partir do início dos anos 2000, houve uma mudança no cenário nacional, com a ampliação de recursos, a melhoria da capacidade institucional e a definição de marco legal. Porém, não houve uma avaliação das ações, principalmente do PAC Saneamento. O presente estudo analisa esse programa na Bahia em relação aos desafios da universalização. A metodologia envolveu pesquisa documental e análise de dados secundários. Constatou-se a inexistência de uma lógica clara na definição dos investimentos do programa. Houve priorização de ações estruturais, especialmente em água e esgoto, em detrimento das estruturantes, essenciais à sustentabilidade das ações. A concepção do programa não dialogou com o perfil do deficit dos serviços. Apesar da ampliação dos investimentos, a lógica de concepção foi sustentada no neodesenvolvimentismo, com a implementação de megaempreendimentos e o estímulo às parcerias público-privadas. O êxito de programas de saneamento implica o protagonismo municipal, a universalização, a integralidade, a adoção de tecnologias apropriadas, a intersetorialidade, a participação e o controle social, princípios que o programa pouco incorporou. O aprofundamento da democracia e a implementação de políticas alinhadas aos direitos humano e social possibilitarão reverter o deficit dos serviços no Brasil.

Introdução

No Brasil, a universalização do acesso ao saneamento básico ainda está longe de ser alcançada, embora esse serviço público seja reconhecido como um direito humano essencial. O testemunho da debilidade histórica da ação estatal no campo do saneamento é facilmente constatado ao percorrer as periferias das grandes cidades e as áreas rurais dos pequenos municípios. A cobertura e a qualidade dos serviços são marcadamente desiguais entre as regiões brasileiras, assim como os níveis de renda e a escolaridade, sendo resultados das políticas públicas e de uma estrutura social que concentra renda e produz uma sociedade apartada, com acesso diferenciado a direitos considerados fundamentais, como a água. O deficit do acesso aos serviços de saneamento segue o padrão dos verificados nas políticas sociais no Brasil, com recortes sociais e territoriais. Assim é que, em 2010, 33,9 e 50,7% da população brasileira, respectivamente, tinha acesso precário ao abastecimento de água potável e ao esgotamento sanitário. Nesse ano, o manejo precário dos resíduos sólidos atingia 27,2% da população, além de 14,2% que não tinham qualquer tipo de atendimento (Brasil, 2013). Esses dados revelam vulnerabilidade da população a um conjunto de enfermidades relacionadas à carência ou à falta de saneamento básico. As relações entre a deficiência ou inexistência de saneamento básico e a saúde são das mais ponderáveis.

Ensink & Cairncross (2012) realizaram um relevante auxílio ao discutirem a classificação ambiental das doenças relacionadas ao saneamento básico. Cairncross & Valdmanis (2006) ressaltam a contribuição do saneamento na saúde das populações de países em desenvolvimento, diante, principalmente, do controle da diarreia, uma das enfermidades que mais mata crianças no mundo. Coimbra & Santos (2000) destacam as relações entre saúde, minorias e desigualdade nos povos indígenas no Brasil. Já Maricato (2011), ao debater as cidades sustentáveis, revela que a urbanização periférica no Brasil produziu desigualdades sociais e predação ambiental, sendo as populações mais vulneráveis as que vivem nas periferias e nas áreas próximas de mananciais. O cenário de deficit de serviços de saneamento no Brasil é incompatível com o nível de riqueza do país e com os requisitos mínimos de acesso aos direitos sociais, além de expor as fragilidades das políticas públicas da área, impondo ao Estado brasileiro a implementação de políticas, programas e ações que objetivam a garantia da universalização do acesso a esses serviços públicos. A atuação do Estado brasileiro para enfrentar o deficit de saneamento básico é recente, descontínua e atrelada ao contexto econômico, político e social vigente. Segundo Rezende & Heller (2008), somente a partir dos anos de 1960 é que foram iniciadas estratégias de atuação mais organizada do Estado no saneamento básico e apenas nos anos de 1970 que o país passou a contar com um conjunto de metas, diretrizes e mecanismos de financiamento no âmbito do Plano Nacional de Saneamento (PLANASA). Para Arretche (1996), o Planasa privilegiou as regiões Sul e Sudeste do país, onde se concentrou a maior parte dos investimentos, os quais contemplaram segmentos populacionais de maior renda. Para Moraes (1993) e Costa (2003), dos aspectos negativos do Plano destacam-se o seu centralismo, o afastamento da política aos objetivos sanitários, a falta de participação social, o alijamento do poder local nos processos de decisão e as concepções de projetos que não dialogavam com as realidades locais. Após o Planasa, extinto no final dos anos de 1980 sob fortes críticas em função de seus resultados, já que não atingiu suas metas e a engenharia financeira não se sustentou (Moraes, 1993; Costa, 2003; Rezende & Heller, 2008), o Brasil se ressentiu da falta de uma política de saneamento básico.

Só a partir de 2003 que essa ação básica de promoção à saúde e proteção ambiental passou a compor uma agenda positiva, contando com uma maior atuação do Governo Federal por meio de uma estrutura institucional mais claramente definida, de mecanismos de financiamento e de um arcabouço legal (Borja, 2014). Os marcos desse processo foram a criação da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, no âmbito do Ministério das Cidades; a promulgação da Lei nº 11.445/2007, que definiu as diretrizes nacionais e a política federal para o saneamento básico; a retomada dos investimentos; e a elaboração do Plano Nacional de Saneamento Básico (PNSB), aprovado em 2013 (Brasil, 2013). Do ponto de vista dos investimentos, o Governo Federal inaugurou uma nova fase a partir de 2003, não apenas pela sua ampliação, mas também pelo aporte significativo de recursos do Orçamento Geral da União (OGU) em infraestrutura, se comparados aos períodos anteriores. Em 2007, com a criação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), houve uma ampliação significativa dos recursos destinados ao saneamento. Segundo o Governo Federal, o PAC foi concebido com o objetivo de impulsionar um conjunto de ações capazes de elevar o Brasil a um novo modelo de desenvolvimento para acelerar o crescimento econômico do país por meio de investimentos da ordem de R$ 1,5 trilhão entre 2007 a 2014. Para a área de saneamento básico, no mesmo período, foram previstos investimentos de R$ 89,57 bilhões, dos quais R$ 4 bilhões foram destinados ao Estado da Bahia, objeto de análise do presente trabalho (Brasil, 2010; Brasil, 2015a; 2015b). Apesar do grande volume de investimentos na área do saneamento básico, a concepção e a implementação do PAC têm revelado um conjunto de contradições e fragilidades, especialmente para fazer frente aos desafios da universalização dos serviços no país. Mas, até o momento, não foram realizadas avaliações sobre a efetividade do programa quanto às metas da universalização. Assim, neste estudo, busca-se estudar o PAC Saneamento na Bahia com o objetivo de analisar a sua concepção e priorização de investimentos em relação aos desafios da universalização do acesso aos serviços públicos de saneamento básico nesse Estado. Algumas considerações sobre o princípio da universalização e dos direitos sociais As noções de igualdade, de acesso universal e de garantia dos direitos sociais surgem em um momento histórico determinado nas sociedades capitalistas avançadas, após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em torno do chamado Welfare State, que teve nas ideais do economista John Maynard Keynes (1883-1946) as bases de sua concepção, assentada no modelo de produção fordista-taylorista e marcada pelo consumo de massa e pleno emprego (Hirsch, 2010).

Nesse momento, o Estado passou a ser o provedor de políticas sociais, e o cidadão foi elevado à condição de sujeito passível de direitos sociais (Fleury, 1994). Para Hirsch (2010), os ganhos de capital, naquele momento, eram compatíveis com o aumento do salário, sendo possível emergir um tipo de Estado, chamado de Estado do Bem-Estar Social, que veio, posteriormente, a se constituir no maior pacto social da história entre capital e trabalho (Anderson, 1995), já que permitiu manter o modo de produção capitalista e a proteção do trabalho por meio de políticas sociais democráticas. A soberania econômica dos Estados-Nação e a limitada mobilidade internacional do capital possibilitaram intervenções no campo das políticas sociais.

O pacto social perdurou até os anos de 1970, quando o capitalismo entrou em nova crise e as teses do liberalismo econômico encontram terreno fértil para se legitimar. Nos anos de 1980, os contextos político, econômico e social favoreceram as concepções neoliberais e o avanço da globalização do capital, com flexibilização de direitos sociais, levando ao desmonte das políticas keynesianas (Behring, 2002). Assim, os esforços dos Estados-Nação em desenvolver e manter políticas sociais passaram a ser limitados e orientados em função da rentabilidade do capital (Hirsch, 2010). Nesse momento, a política social constituiu-se como uma ação paternalista do Estado, geradora de desequilíbrio e podendo ser acessada via mercado (Behring, 2002). Nessas condições, as noções de direitos sociais universais e de igualdade, tributárias de heranças que datam do século XVIII, sofreram importante inflexão, apesar de as sociedades ocidentais contarem com uma ordem social e legal fortemente assentada nos princípios dos direitos humanos e sociais. No entanto, as experiências do mundo ocidental do Welfare State produziram sistemas de proteção social que perduram até hoje, mesmo com as importantes inflexões das últimas décadas. Tal sistema tem características distintas, resultado das correlações de força entre Estado, sociedade e capital no âmbito de cada Estado-Nação (Behring, 2002). O sistema de proteção social brasileiro, cujo esboço inicial data dos anos de 1930 (Baptista, 2007), sofreu forte influência do ideário da seguridade social. Esse tipo de sistema difundiu-se especialmente até a década de 1970, quando a crise do petróleo e a ampliação dos gastos sociais serviram como justificativa para a intervenção do Estado na economia e nas políticas sociais (Brasil, 2014a). O contexto da redemocratização no país, ocorrido na década de 1980, ocasionou a retomada do debate sobre as políticas públicas e sociais, que veio a culminar na Constituição Federal de 1988. A Constituição prevê direitos sociais associados à condição de cidadania e um modelo de seguridade social constituído por três segmentos: a saúde, a previdência social e a assistência social.

Prevê-se o acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a qual, nesse momento, é um direito de todos e dever do Estado, tendo o Sistema Único de Saúde (SUS) como elemento fundamental na promoção das ações. Embora o SUS represente uma importante conquista da sociedade, sendo um marco na evolução jurídicoinstitucional no campo das políticas públicas no país, as seguidas emendas constitucionais, as parcerias público-privadas e o ajuste fiscal têm fragilizado o seu caráter público. Por outro lado, reformas da previdência têm contribuído para desmontar a concepção do sistema de seguridade social criado pela Carta Magna. Obviamente que a concepção e a direção das políticas sociais nesse cenário discutido têm forte influência na delimitação das políticas públicas de saneamento e em seus programas e ações, a exemplo do PAC Saneamento, objeto do presente estudo. O direito social ao saneamento básico: algumas anotações Para Paim & Silva (2010), a universalização do acesso aos serviços públicos é uma necessidade para a garantia de direitos sociais e deve ser reconhecida como direito de todos e dever do Estado, noção que deve guiar as ações de saneamento básico. Apesar de a Constituição Federal Brasileira de 1988 (Brasil, 1988) não incorporar, de forma explícita, o saneamento básico como direito social, infere-se que tal noção está implícita nos capítulos que estabelecem os direitos à saúde, à moradia e ao meio ambiente. Essa consideração se sustenta no fato de se reconhecer na Constituição uma concepção de ação estatal e de políticas públicas que se filia ao ideário do Estado da Seguridade Social. Mesmo com o esforço de positivação do direito ao saneamento básico no país, já que existem diversos projetos de emendas constitucionais para tal reconhecimento, e dos avanços do marco legal do saneamento básico recentemente formulado, percebe-se que a privatização dos serviços nas diversas modalidades e os recentes cortes nos investimentos sem função do ajuste fiscal ameaçam os caminhos delineados pelo Plano Nacional de Saneamento Básico para a universalização dos serviços no Brasil. Nesse cenário, torna-se uma exigência avaliar as políticas públicas e os programas de investimentos, como o PAC Saneamento, em relação aos desafios da universalização. Assim, o presente trabalho visa analisar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Saneamento no Estado da Bahia quanto aos desafios da universalização do acesso aos serviços públicos de saneamento básico.

Autores: Mateus Almeida Cunha e Patrícia Campos Borja.

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