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A Guerra do Esgoto

Território historicamente sensível aos avanços das construtoras e incorporadoras, a Zona Oeste do Rio é cenário do maior projeto de privatização do saneamento básico do Brasil. O direito constitucional que enfim começa a ser garantido a milhões de brasileiros esconde o lado perverso da exclusão das populações mais pobres alijadas com a transformação de um serviço público em mercadoria.

A implantação de um sistema de esgotamento sanitário em 21 bairros da região é tocado pela concessionária Foz Águas 5 – parceria da Odebrecht Ambiental, que atende 16,1 milhões de pessoas de mais de 180 municípios em doze estados brasileiros, e da Águas do Brasil, que opera 14 concessões em 15 municípios nos estados do Rio, São Paulo, Amazonas e Minas Gerais.

O projeto vai atender 48% do território da cidade do Rio de Janeiro. Os investimentos previstos em 2.100 quilômetros de redes, 10 estações de tratamento de esgoto (ETEs) e 140 estações elevatórias, somam R$ 2,6 bilhões em trinta anos de concessão. “O projeto da empresa foi concebido para elevar os 5% de esgoto coletado e tratado na AP5 quando assumiu o sistema, em maio de 2012, para 90% de cobertura por coleta em 25 anos e 85% de tratamento, beneficiando assim mais de 2 milhões de pessoas até final do plano”, diz nota da assessoria de imprensa da Foz Águas 5.

Estado e município disputam agora a concessão dos serviços de saneamento na área que engloba a Barra da Tijuca e Jacarepaguá. Um acordo de 2007 estabeleceu que a tarefa caberia à Companhia Estadual de Águas e Esgotos por mais 50 anos. O Termo de Reconhecimento Recíproco de Direitos e Obrigações firmado pelo Governo Estadual e Prefeitura do Rio estabelece que a CEDAE permanecerá sendo a prestadora dos serviços, menos nas favelas e nos 21 bairros agora entregues a Foz Águas 5.

Há cinco anos, em resposta às determinações do Plano Nacional de Saneamento Básico, o município do Rio de Janeiro iniciou a elaboração do plano municipal para os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, mas esqueceu de prever tarifas sociais, excluiu áreas de ocupação irregular e desrespeitou o decreto de regulamentação da Lei nº 11.445/2007 que determina no artigo 25, parágrafo 9, o princípio da universalização.

A Guerra do Esgoto é consequência da tentativa da Prefeitura do Rio em reassumir o protagonismo na gestão do saneamento básico na cidade. A Constituição e o Plano Nacional de Saneamento Básico determinam que a competência pelo saneamento básico é de estados e municípios sob comando da União.

Quando ainda não havia a lei, as diferenças já haviam produzido batalhas pouco edificantes. Cabia à CEDAE promover a infraestrutura sanitária do Favela-Bairro, projeto da Prefeitura do Rio que buscava integrar as favelas à cidade, mas a companhia não cumpriu a sua parte do acordo e as boas intenções da política municipal escorreram junto com o esgoto pelos valões das comunidades carentes.

Agora, o Estado, através da CEDAE, procura preservar seu espaço e investimentos. A empresa diz que aplicou R$ 1,9 bilhão na Zona Oeste e que o índice de tratamento de esgoto passou de 0% para 85%, na Barra da Tijuca, para 70%, no Recreio, e para 55%, em Jacarepaguá.

Ainda assim, de acordo com o “Desafios do Saneamento em Metrópoles da Copa 2014: Estudo da Região Metropolitana do Rio de Janeiro”, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o esgoto não tratado de 1,2 milhão de moradias é despejado diretamente nos rios e lagoas com impacto na saúde e no meio ambiente.

Dados do Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelam que 71% dos domicílios sem tratamento de esgoto da cidade ficavam na Zona Oeste, onde a mortalidade infantil representa 46% dos óbitos de crianças de zero a cinco anos da capital fluminense.

“A qualidade mais do que a quantidade de água é o grande problema do Brasil. Setenta por cento da população urbana brasileira, cerca de 70 milhões de pessoas, descartam esgoto nos rios sem nenhum tratamento”, diz Walfredo Schindler, diretor-superintendente da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS). Cada R$ 1 investido em saneamento básico economiza R$ 4 em custos no sistema de saúde.

A conta parece simples, mas não é. A Fundação Getúlio Vargas aponta que seriam necessários R$ 250 milhões por ano, até 2014, para universalizar a coleta e o tratamento de esgoto na região metropolitana do Rio. Para uma cidade com um PIB de US$ 112 bilhões é uma conta pesada, mas está longe de ser um poço sem fundo.

O Chile que o diga. O país é considerado um exemplo de sucesso aos desafios de abastecimento de água e esgoto. A cobertura de água potável chega a 100%. A coleta e tratamento do esgoto atingem 98% da população de 17,5 milhões de pessoas. Há uma estimativa de que o saneamento poupou cerca de US$ 5 milhões de recursos ao país.

O Chile pode ser pequeno, a população não chega a 10% da brasileira, mas o PIB do país também não se compara ao do Brasil: US$ 410 bilhões contra mais de 5,5 trilhões, em 2014. É menos de quatro vezes maior que o PIB da cidade do Rio.

Até 1977, os serviços urbanos de água e esgoto eram executados por muitas empresas públicas. Depois, começou a ser coordenado pelo Serviço Nacional de Obras Sanitárias. A reforma do setor ganhou força com o fim do regime sanguinário dos militares e a redemocratização do país a partir de 1988.

O marco regulatório – com um sistema operado pela iniciativa privada, mas sob controle público, alicerçado em uma política de preços com foco na eficiência dos serviços com subsídios para o atendimento da população mais pobre – é considerado um modelo não só para a América Latina, mas também para a Europa, pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

A responsabilidade pela regulação é compartilhada entre a Superintendência de Serviços Sanitários (SISS) e o Ministério da Saúde. O SISS controla os serviços de água e saneamento em áreas urbanas de acordo com as normas financeiras e de qualidade. O modelo tarifário foi copiado dos setores elétrico e de telecomunicações, com estimativa de custos de eficiência e subsídios apenas para aqueles que comprovadamente têm meios limitados. O subsídio é para a pessoa, não para as empresas. É limitado a 15 metros cúbicos e vale por três anos. Dezoito por cento dos consumidores do Chile tem subsídio e a meta é chegar a 30%.

O setor privado brasileiro cobiça um naco dos serviços de saneamento não é de agora. Em um seminário sobre sustentabilidade promovido no Rio de Janeiro pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), em 2013, o argumento principal dos empresários era que sem a participação do setor privado não se atingiria a meta do Plano Nacional de Saneamento Básico de levar água e esgoto para todos os brasileiros até 2030 apenas com recursos públicos. Um marco regulatório para o setor e desonerações fiscais que aumentassem os investimentos na área eram duas das providências defendidas por especialistas.

A privatização à brasileira implantada na Zona Oeste do Rio é alicerçada no modelo das parcerias-público-privadas. A fórmula já tinha sido adotada em 2009. O Governo do Estado e a CEDAE estabeleceram, com anuência do governo municipal, uma pareceria público-privada para a construção da rede de captação de esgotos da Península, Gleba F e O2, áreas de empreendimentos comerciais e habitacionais de alta renda dos grupos RJZ Cyrella e Carvalho Hosken situada às margens das lagoas que recebem o esgotamento sanitário das construções.

A possibilidade de sediar os Jogos Olímpicos reforçou a estratégia. As PPPs, celebradas com entusiasmo por autoridades públicas e incorporadores imobiliários, não atacam uma das essências do capitalismo: a promoção da desigualdade. No caso do sistema de saneamento de uma das regiões mais carentes do Rio, o drama se repete.

“Segundo o edital, as populações residentes em áreas de proteção ambiental e em áreas invadidas estão fora dos investimentos públicos de saneamento. Ora, grande parte das favelas da AP-5 apresenta essas condições. O atendimento de favelas e loteamentos irregulares está vinculado à conclusão de projetos de urbanização, a ser realizada pelo Programa Morar Carioca, programa da prefeitura de urbanização de favela, até 2020. Mais uma vez, os moradores desse tipo de ocupação estarão excluídos dos direitos aos serviços”, aponta Ana Lúcia Britto, professora da Pós-Graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O adiamento da universalização só agrava os problemas de uma região com rios, lagoas e até praias ambientalmente comprometidos. É o que os moradores da Barra da Tijuca já não conseguem mais evitar. Sócios da poluição, eles podem continuar batendo panelas contra o governo federal, mas só vão se livrar do lixo e dos coliformes que atrapalham o banho de mar se baterem na porta certa: os governos estadual e municipal.

 

Fonte: Carta Maior

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