saneamento basico

“Vivemos um novo ciclo e não uma crise hídrica”

Ultimamente, o que mais tem se falado é sobre a falta de água nos reservatórios que abastecem não só o Estado de São Paulo, mas todos os Estados da região Sudeste. Em contraponto, as cheias na região Norte do país têm castigado milhares de pessoas, como nos Estados do Acre e Rondônia, mas por que chove tanto em um lugar a ponto de o rio Acre chegar a 18 metros, por exemplo, sendo que São Paulo ainda está na primeira cota do volume morto no Sistema Cantareira? O climatologista da Somar Meteorologia, Paulo Etchichury explica o que esses dois extremos têm em comum e mostra que o Brasil vive uma nova fase e que ainda não tem se preparado para os próximos anos.

Por que chove tanto no Norte que sofre com as cheias e no Sudeste tem falta de chuvas que gerou a pior crise hídrica nos últimos 84 anos?

O excesso de chuvas no Norte está associado à crise hídrica no Sudeste. O comportamento das frentes frias é quem determina a concentração da umidade da Amazônia. Nos últimos três verões, as frentes frias têm sido alteradas, de modo que são mais fracas ou até bloqueadas e nem chegam ao Sudeste, isso força a concentração de chuvas durante o período mais longo no Norte, especialmente no Acre, Rondônia e parte do Amazonas.

bacia hidrográfica

As cheias dos rios na região amazônica são diferentes das cheias dos rios em outras regiões do país?

Sim, porque as bacias hidrográficas desembocam em oceanos diferentes. E é muito interessante porque nossa bacia hidrográfica nasce perto do mar, mas dá uma volta para depois vai para o oceano. Um exemplo disso é o rio Tietê, ele nasce em Salesópolis a 15 km do mar, mas cruza todo o Estado de São Paulo, a região Sul e desemboca na Bacia do Prata.

Apesar desta crise, o Brasil é realmente privilegiado como sempre se ouviu falar?

A natureza generosamente nos irriga. Somos privilegiados em termos de recursos naturais, pois temos um regime de chuvas anual e uma bacia hidrográfica fantástica.

O desmatamento tem alguma relação com as cheias na região Norte?

Eu trato a questão do desmatamento como consequência e não como a causa. O ambiente degradável sofre por qualquer circunstância, no excesso e na escassez. O primeiro rio a transbordar ou secar é o assoreado.

O que você acha sobre a crise hídrica no Sudeste?

Temos que entender que não estamos vivendo uma crise hídrica, e isso é um erro, pois estamos vivendo um novo ciclo. A população, os governantes e as comunidades científicas tratam isso como crise, o que pressupõe que os problemas enfrentados atualmente voltarão ao normal, mas isso não vai acontecer.

crise hídrica

O que explica esse novo ciclo?

Estamos em um ciclo que chove menos em termos de volume. A variabilidade de chuvas está associada ao ciclo dos oceanos, em especial a questão do ciclo interdecadal do oceano pacífico que vive neste momento o risco de águas frias, diferente do que se viu em períodos anteriores, entre os anos 70 e 2005, que tinha um ciclo de águas quentes e os preponderantes El Ñinos, com chuvas abundantes e inundações no Sudeste.

Estes ciclos duram em média 30 anos. Então, quando começou o de agora?

Os ciclos da natureza não são bem determinados, não tem data de início e nem de término, até porque acontecem no oceano e a atmosfera reage a esta condição. Mas tem que ter a consciência de que estamos no início, então as autoridades, os executivos e a população em geral precisa se adequar. A natureza dá sinais de que está chovendo menos, mas não temos percebido.

Como?

Quando falo em adequar significa continuar o que estamos fazendo: economizar. Não temos uma informação absoluta para dizer faça isso ou aquilo porque depende de cada atividade buscar soluções para isso. Não podemos mais imaginar que quando começar a chover resolverá todo o problema, como acontecia no passado.

A crise hídrica em São Paulo poderia ter sido prevista?

Temos um déficit de 40% nos últimos anos, por isso, deveria ter alguma ação para se adequar, mas isso não autoriza a transferência de culpa. Precisa ter uma consciência melhor em como lidar com os recursos naturais. Os sistemas de abastecimento de água e de energia até são preparados para os piores períodos de chuva, mas eles têm recorrência muito baixa, por isso deve-se tratar como ciclo e não uma crise.

A população tem reagido à crise hídrica. Por quê?

Só estamos reagindo agora por causa de uma ameaça concreta: a falta de água. A população especialmente na capital paulista nunca deu valor à água e sempre conviveu com dois rios (Tietê e Pinheiros) que cortam a cidade e viram esgoto a céu aberto. A partir de agora tenho certeza que vão encabeçar isso e não será mais aceito este tipo de coisa.

rio poluído

Por falar nos rios que cortam a cidade de São Paulo, você acha que se eles não fossem poluídos e se os órgãos responsáveis pudessem usar essas águas, ainda assim teríamos a crise?

Para o abastecimento não, pois a vazão que passa por São Paulo é pequena, embora tenha que se entender que seria interessante se estes rios fossem tratados, porque o Rio Pinheiros quando inverte seu curso joga água dentro do Sistema Billings, só que infelizmente hoje ele joga poluição.

E por que não se usa o Sistema Billings, já que ele tem uma capacidade igual ao Cantareira?

Exatamente porque está poluído, já que toda a água do Rio Pinheiros é jogada lá para não alagar o Rio Tietê, na questão de vias públicas. A nossa preocupação como metrópole é muito mais com as vias públicas, inundações, a questão da mobilidade e não com a água, já que antes tínhamos em excesso. Agora tem se realizado alguns trabalhos para transportar parte da água tratada da Billings para outros reservatórios, mas antes da chamada crise hídrica, nada era feito.

Todo mundo diz que o problema é que não chove no Cantareira. A solução seria a construção de um novo reservatório?

O Sistema Billings é equivalente ao Cantareira. Mas é natural pensar em construir mais reservatórios porque é mais difícil mudar nossos costumes. As nossas próprias regras e leis nos limitam a fazer algo pensando no futuro. Imagine há 15 anos se o governo de São Paulo fizesse uma obra pensando em uma seca? Iriam dizer que era loucura, algo desnecessário, já que sempre tinha tudo alagado. Agora, temos vítimas por causa da falta de chuvas, mas as mortes não são indicadores climáticos, e sim sociais. A chuva não mata, ela é vida!

Mas chove no Cantareira?

Sim, mas o problema é que como o reservatório foi estressado ao máximo. Naturalmente, ele demora pra encher, pode chover, mas não enxergamos, pois a água foi absorvida e reconstituída no lençol freático.

Por que chove mais em São Paulo do que na região do Sistema Cantareira?

É fato que especialmente as chuvas de verão são maiores em São Paulo do que no Cantareira. Só que tem o fator da condição local, da urbanização, da concentração de concreto e radiação na capital paulista, as chamadas ilhas de calor. Como a temperatura no centro do Estado é maior, potencializa o número de chuvas. Por isso, não chove no lugar errado, chove mais onde degradamos o ambiente. Quem não respeita a natureza, ela apresenta a conta.

O aquecimento global tem a ver com tudo isso?

Ele não está ligado a isso, porque é um ciclo natural. A atmosfera está em constante transformação. No entanto, o aquecimento global não evita os ciclos, mas os potencializa em extremos seja de escassez ou excesso, o que representa risco, já que o ser humano não vive bem com isso e precisa de equilíbrio.

chuva cantareira

Quais as providências que se deve tomar imediatamente no Sudeste?

Não vamos voltar a viver como antes em abundância, portanto, deve-se ter consciência de que se cresce na adversidade. Como exemplo, a cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos, teve uma crise e não construiu nenhuma barragem, apenas corrigiram o desperdício. Para cada sistema tem uma solução adequada, não dá para generalizar, mas em síntese, tem que ter o entendimento.

Vai ter racionamento ou não?

Depende de outras variáveis, como o consumo, mas o risco permanece. O cidadão vai continuar pagando uma energia mais cara sim porque não teve chuva suficiente nos reservatórios. Vai depender de ações políticas sobre a necessidade de um racionamento.

O que nos espera pela frente?

A chamada “crise hídrica” poderia ser bem pior. Com a falta de chuvas no Sudeste, o reservatório de energia não deve chegar a 30% do mínimo esperado para ter um ano sem racionamento. Contando que agora termina o período de chuvas, é natural que não chova na região Sul, que tem gerado energia e ajudado o Sudeste.

Precisamos ter consciência de que estamos com a bandeira vermelha e digo sem demagogia que é melhor continuar com ela, do que ficar preta, ou seja, o apagão, porque esse é o grande risco.

 

Paulo Etchichury

Paulo Etchichury é meteorologista, formado pela Universidade Federal de Pelotas. Sócio-diretor da Somar Meteorologia, consultor de tendências climáticas para empresas de segmentos diversos: cooperativas agrícolas, bancos, indústrias, órgãos estaduais e prefeituras. Especialista no atendimento do setor de energia com assessoria exclusiva para mais de 40 empresas e colunista da revista Globo Rural

 

 

Fonte: http://www.tempoagora.com.br/sustentabilidade/destaque-da-semana-vivemos-um-novo-ciclo-e-nao-uma-crise-hidrica/

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