INTRODUÇÃO
A água é, com certeza, um dos recursos naturais mais importantes que a sociedade possui. Em um primeiro momento durante a história do homem, desenvolveu-se a errônea idéia de que a água era um bem renovável e abundante, sendo utilizada de forma indiscriminada, tanto para o consumo, quanto para a diluição de poluentes e fonte de despejo de dejetos.
Hoje em dia, tem-se a consciência de que a água é finita e seu uso precisa ser fiscalizado e controlado, para que não ocorra uma crise que atinja toda a humanidade. A falta desse valioso recurso implicaria um colapso na estrutura de toda sociedade mundial, com sérias conseqüências em vários setores, destacando-se a agricultura, a pecuária, a produção de energia e, também, o consumo humano.
O tema do presente artigoo mostra-se altamente relevante, pois a conservação qualitativa e quantitativa dos recursos hídricos é uma preocupação não só no Brasil, como em todo o mundo.
Neste contexto, a água será considerada elemento estratégico nos negócios deste século, devendo, assim, o Estado preservar seus interesses, regulando a concessão, o uso e a fiscalização dos recursos hídricos sob seu domínio.
Este artigo tem o escopo de contribuir para uma compreensão sobre a outorga de direito de usos de recursos hídricos, ressaltando-se como objetivos: a análise dos dispositivos legais que disponham sobre o instituto, a verificação da efetividade jurídica do instrumento de outorga para permitir a operacionalização da gestão de águas e da utilização da outorga como ferramenta jurídica de controle do uso racional dos recursos hídricos, especificar os dispositivos que propiciem ao usuário o acesso à outorga e às águas, discorrer sobre os serviços que dependem da outorga e os mecanismos necessários à sua efetivação, bem como expor os princípios de planejamento e uso múltiplo das águas, valor econômico do bem e da gestão descentralizada e participativa.
O artigo traz tem extremamente relevante, pois incorpora ao setor hídrico do Direito Ambiental um grande valor, mostrando que a água não é um bem infinito e sem valor, sendo necessário, portanto, que o poder Público normatize e fiscalize os usos dos recursos hídricos para que esses recursos fundamentais não sejam desperdiçados inutilmente.
- Conceito de Outorga de Direitos de Uso de Água
A Constituição Federal dispõe, em seu artigo 21, inciso XIX, que cabe à União definir os critérios de outorga dos direitos de uso de recursos hídricos. A outorga, no sentido jurídico, vai exigir a intervenção do Poder Executivo Federal e dos Poderes Executivos Estaduais e do Distrito Federal para manifestar sua vontade.
A outorga do direito de uso de recursos hídricos é o instrumento pelo qual o Poder Público atribui ao interessado, público ou privado, o direito de utilizar privativamente dos recursos aqüíferos. E, segundo o artigo 5º, III, da Lei nº 9.433/97 a outorga é um dos instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos. Por meio da outorga, o Estado passa a ter controle sobre a captação e o lançamento de efluentes nos corpos d´água, evitando que, como ocorria no passado, o bem público fosse apropriado de forma irregular para gerar lucro e riqueza a uma pequena parcela da sociedade, transferindo o ônus da manutenção e conservação para a sociedade como um todo.
Hoje em dia, é explícita a necessidade de se controlar o uso da água, tendo, na concepção atual, de que este recurso é um bem econômico de valor elevado, além de ser finito e escasso. De acordo com o que foi disposto no primeiro capítulo do presente estudo, a água é um bem econômico e deve ser utilizado com cautela e moderação, para garantir o desenvolvimento sustentável da sociedade. Portanto, é nesse contexto que nasce o instituto da outorga e se apresenta como instrumento de extrema importância jurídico-social para manutenção da qualidade dos recursos hídricos brasileiros.
O artigo 11 da lei nº 9.433/97 dispõe que
O regime de outorga de direitos de uso de recursos hídricos tem como objetivos assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água e o efetivo exercício dos direitos de acesso à água.
Sobre esse dispositivo legal, manifesta-se Paulo Affonso Leme Machado, explicitando o seguinte:
Essa norma legal é vinculante para a ação governamental federal e estadual na outorga de direitos de uso. Os Governos não podem conceder ou autorizar usos que agridam a qualidade e a quantidade das águas, assim como não podem agir sem eqüidade no darem acesso à água (MACHADO, 2002, p. 58).
A instrução Normativa nº 4, de 21/06/2000, do Ministério do Meio Ambiente definiu a outorga de direitos de uso de recursos hídricos como
Ato administrativo, de autorização, mediante o qual o Poder Público outorgante faculta ao outorgado o direito de uso do recurso hídrico, por prazo determinado, nos termos e condições expressas do respectivo ato[1].
A outorga visa a dar uma garantia quanto à disponibilidade de água, visto que este recurso é básico ao processo produtivo. Tem como função ratear a água disponível entre as demandas existentes ou potenciais, a fim de alcançar melhores resultados à sociedade, levando-se em conta os fatores econômico-industriais e a sustentabilidade sócio-ambiental. A outorga deve ser solicitada ao ente político que detém o seu domínio ou que lhe faça as vezes.
Para Paulo de Bessa Antunes, a outorga deve ser considerada como “um instrumento jurídico-administrativo intermediário entre a autorização e a licença administrativa”[2].
A lei nº 9.433/97 enfatiza expressamente que a outorga dos direitos de usos de água não pode ficar na gestão privada, sendo que o instituo é de competência o Poder Público, que pode modificá-la a qualquer momento, de forma motivada para atender ao interesse público.
O Código das Águas, em seu artigo 43 caput já possuía norma no sentido de que os recursos hídricos públicos a serem aplicadas na agricultura, indústria e higiene, precisariam de concessão administrativa, para atender ao interesse público.
Destaca Paulo Affonso Machado que a outorga deveria adotar o princípio da participação, ou seja, as decisões sobre a concessão deveriam também passar pela sociedade civil e não permanecer apenas nas decisões dos servidores públicos[3].
- Necessidade da Outorga
A água é um recurso que pode ser aproveitado de diversas maneiras, com diferentes finalidades, tais como: abastecimento humano, dessedentação animal, irrigação, indústria, geração de energia elétrica, preservação ambiental, paisagismo, lazer, navegação, dentre outras. O que ocorre é que, muitas vezes, esses usos podem ser concorrentes, gerando conflito entre usuários e a Administração e usuários entre si e, também, causando impactos ambientais negativos.
O art. 1º, inciso IV e o parágrafo único do art. 13, ambos da lei 9.433/97, estabelecem o uso múltiplo das águas e a outorga. Em situações de escassez, leva-se em conta o uso prioritário dos recursos hídricos que é o consumo humano e a dessedentação dos animais, segundo o art. 1º, III, da referida lei.
De acordo com o exposto acima, fica clara a necessidade de se criar um mecanismo para gerir os recursos hídricos, com o objetivo de buscar acomodar e ponderar as demandas econômicas, sociais e ambientais por água. Busca-se também, respeitar os níveis de desenvolvimento sustentável, de modo a não prejudicar as gerações vindouras.
Neste contexto é que se faz necessário o instrumento da outorga, pois por meio dele espera-se assegurar o acesso do usuário à água, bem como o controle da qualidade e quantitativo dos recursos hídricos.
A falta de respeito com o meio ambiente, como queimadas, desmatamento tanto de florestas, como da mata ciliar que protege as margens dos rios, como liberação de esgotos nos rios sem tratamento, dentre outros desrespeitos com a natureza, tem mostrado a necessidade de regular o acesso aos recursos naturais. Em virtude disso, o acesso quantitativo e qualitativo se mostra, atualmente, indispensável para garantir às futuras gerações não só a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos, como de outros bens da natureza. Essa regulamentação é um dos objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos, citado no capítulo II, art. 2º, I, da lei 9.433/97.
- Recursos Hídricos Sujeitos à Outorga
Estão sujeitas à outorga, pelo Poder Público, os direitos dos seguintes usos de recursos hídricos conforme o art. 12 da 9.433/97:
- derivação ou captação de parcela da água existente em um corpo de água para consumo final, inclusive abastecimento público, ou insumo de processo produtivo;
II- extração de água de aqüífero subterrâneo para consumo final ou insumo de processo produtivo;
III- lançamento em corpo de água de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, tratados ou não, com o fim de sua diluição, transporte ou disposição final;
IV-.aproveitamento dos potenciais hidrelétricos;
V- outros usos que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da água existente em um corpo de água.·
O inciso V do presente artigo prevê uma possibilidade de a Administração Publica aumentar os casos em que a outorga de água seja necessária. A Administração, contudo, terá o ônus da prova a respeito da possibilidade da alteração do regime da quantidade e/ou quantidade existente em corpo de água.
A falta da outorga nos casos das obras hidráulicas, descritas no artigo 49 da Lei nº 9433/97, configura infração das normas de utilização de recursos hídricos, levando a Administração a aplicar a pena de advertência, a multa, o embargo provisório e o embargo definitivo. Também, contra o usuário que infringir as obrigações do artigo 12 da Lei nº 9.433/97, utilizando de recursos hídricos sem a outorga, há a possibilidade de se intentar ação civil pública.
- Exigências para a obtenção da Outorga
Para se ter acesso aos recursos hídricos elencados no art. 12 da lei 9.433/97, de forma lícita, há que se requerer a outorga de uso desses recursos hídricos. Não basta, porém, requerer a outorga para ter a sua obtenção, pois há que se respeitar à reserva hídrica para a salvaguarda ambiental, a outorga preventiva, o estudo prévio de impacto ambiental, para verificar quais conseqüências o uso requerido pode causa ao meio ambiente.
O órgão responsável deve proceder três análises antes de conferir a outorga, quais sejam, a viabilidade técnica do empreendimento, a quantidade e qualidade do corpo de água e o preenchimento dos requisitos legais inerentes ao instituto da outorga. É necessária motivação do agente administrativo, para atender aos princípios da moralidade, legalidade e impessoalidade.
Desse modo, consegue-se controlar o acesso aos recursos hídricos, mantendo seus aspectos qualitativos e quantitativos, vinculando a ação governamental a autorizar somente usos da água que não agridam os recursos hídricos.
4.1. Reserva Hídrica
Os artigos 11 e o parágrafo único do artigo 13, ambos da Lei nº 9.433/97, indicam o objetivo da outorga, no sentido da preservação do uso múltiplo das águas e o acesso de todos a este recurso. Vale lembrar que, segundo a disposição constitucional do artigo 225, cabe a toda coletividade a defesa do equilíbrio do meio ambiente.
Ressaltando sobre o tema, Paulo Affonso Leme Machado analisa que
é necessário atenção para que o deferimento das outorgas solicitadas por usuários específicos não torne inviável a qualidade ambiental de um corpo de água. Assim, à semelhança da reserva legal florestal, há uma reserva hídrica que não permitirá que o Poder Público conceda todas as outorgas solicitadas (MACHADO, 2002, p. 61).
Esclarecedora, neste ponto, é a lição do doutrinador, na qual é possível extrair que o governo não está obrigado a conceder todas as outorgas que lhe forem solicitadas, principalmente para o favorecimento de usuários únicos e específicos. É necessário que haja recurso suficiente para o atendimento de emergências e do interesses da população.
A reserva hídrica funciona como uma delimitação para a concessão de outorgas, que tem como objetivo assegurar o direito de acesso à água e a preservação do uso múltiplo dos recursos hídricos.
Há de se ressaltar, outrossim, os usos prioritários da água dispostos na Lei nº 9.433/97 na qual determina-se que, em situações de escassez, deve-se priorizar o consumo humano e a dessedentação dos animais. O interesse público deve ser levado em conta para que o recurso natural atenda da melhor forma toda a coletividade, não podendo a Administração favorecer alguém ou um pequeno grupo ou ficar tolhida a fórmulas imutáveis de concessão da outorga.
4.2. Outorga preventiva
O legislador criou, por meio da edição da Lei nº 9.984/2000, duas modalidade de outorga preventivas ou preliminares segundo disposições contidas nos artigos 6º e 7º da citada lei. No artigo 6º caput, está escrito que “A Agência Nacional de Águas (ANA) poderá emitir outorgas preventivas de uso de recursos hídricos, com a finalidade de declarar a disponibilidade de água para usos requeridos, observado o disposto no artigo 13 da Lei nº 9.433/97”. O parágrafo primeiro do aludido artigo explicita a idéia de que a concessão de outorga preventiva não confere o direito de uso dos recursos hídricos, mas, tão somente, a reserva necessária a viabilizar o planejamento empreendimentos.
Segundo os artigos. 6º e 7º da lei 9.984/00 o requerente poderá pedir a reserva de determinada quantidade de água. Este usuário entra em uma ordem que estabelece a precedência de seu pedido. Com a obtenção da outorga preventiva, o requerente possui um prazo máximo de até 3 anos, estipulado pela ANA, para sua utilização, de forma que a ANA não obriga o seu uso imediato, segundo o art. 6° §2° da lei 9.984/00.
É necessário observar-se que a ANA não está adstrita à outorga preventiva. Assim, se a concessão da outorga violar o Plano de Recursos Hídricos, deve este ser observado, pois a outorga preliminar apenas declara a disponibilidade de água, estabelecendo-se uma preferência entre os adquirentes dos recursos hídricos.
A outorga preventiva também está sujeita ao princípio da publicidade, consagrado no artigo 37 da Constituição Federal de 1988, como sendo ato da Administração Pública. Dessa maneira, o pedido da outorga preliminar deve ser publicado no Diário Oficial da união e em jornal de grande circulação. Sobre o tema da publicidade, Paulo Affonso Machado[4] explica a questão da “vazão passível de outorga”, que seria, em outras palavras, o respeito ao planejamento hídrico realizado em uma bacia hidrográfica, não se escondendo informações sobre a água reservada.
4.3. Estudo prévio de impacto ambiental
O estudo prévio de impacto ambiental é uma exigência constitucional e, também, da legislação infraconstitucional, com o escopo de preservar o meio ambiente e os recursos hídricos de outorgas que possam vir a prejudicar a vazão da água em determinado local, comprometendo seu uso social e industrial. É um ato de controle do Poder Público.
A Lei nº 9.433/97 possui disposição em seus artigos 29 e 30 no sentido de que o ato administrativo não é um ato isolado. Conseqüentemente, é competência dos Poderes Executivos Federal, Estaduais e Municipais a promoção e integração da gestão dos recursos hídricos com a gestão ambiental.
A autoridade que conceder a outorga deverá ter conhecimento sobre a realização do estudo de prévio impacto ambiental, possuindo poderes de requerer diligências, vistorias e fiscalizações, além de acompanhar a realização da audiência pública para a outorga dos direitos de usos da água. Em caso de falta do estudo, cabe ao órgão responsável, a não concessão da outorga e também o acompanhamento de novo estudo em casos de renovação ou suspensão do instituto.
A resolução nº 1/1986, em seu artigo 2º, inciso VII dispõe sobre a exigibilidade do estudo de prévio impacto ambiental, sem, contudo, esgotar todos casos possíveis.
4.4. Licenciamento ambiental
Sobre a interação do tema outorga de uso de recursos hídricos e licenciamento ambiental, explica Paulo Affonso Leme que ambos guardam uma grande semelhança, podendo a Administração unificá-los para obter melhora na eficácia de resultados sociais.
Cumpre ressaltar que a outorga é mais ampla do que o licenciamento ambiental, pois aplica-se ao caso concreto em questão além de levar em conta o Plano de Recursos Hídricos da bacia hidrográfica, traçados para o local. A questão, que é colocada, versa sobre a necessidade da prévia apresentação da licença ambiental para a concessão da outorga. Na verdade, a exigência da demonstração preliminar da licença dependerá de disposição da legislação ambiental federal, estadual e municipal. Contudo, como é asseverado na doutrina, a integração dos institutos de direito ambiental fortalece a Política Nacional de Recursos Hídricos, para que todos tenham água com qualidade e quantidade suficientes para viverem de maneira saudável.
- Direito à Outorga
A partir do advento do artigo 225 da Constituição Federal de 1988 e da Lei nº 9433/97, alterou-se a relação jurídica do Poder Público com as águas, caracterizando-o com um gestor e não como proprietário dos recursos hídricos. Deste modo, possui funções como de fiscalizar e distribuir o uso das águas para garantir a sustentabilidade hídrica do país.
Destarte, assevera Machado[5], em sua obra sobre recursos hídricos, sobre a gradação a qual o Poder Público está submetido para conceder a outorga de água. Também ressalta sobre o dever primário de garantir o consumo humano eficaz, a reserva hídrica para os ecossistemas aquáticos e a outorga preventiva para uso potencial de energia hidráulica, conforme os artigos 6º e 7º da Lei nº 9.984/2000.
É necessário observar que a concessão da outorga não é uma faculdade da Administração Pública, mas sim um direito subjetivo da pessoa física ou jurídica que cumpre todas as disposições previstas nas normas legais referentes à outorga de direitos de usos de recursos hídricos. Destaca-se, a partir disso, que a outorga possui prazos a serem cumpridos, não tendo, portanto, caráter definitivo. Dessa maneira, a expedição da outorga não imobiliza as diretrizes do planejamento das bacias hidrográficas.
5.1. Discricionariedade administrativa na outorga dos recursos hídricos
A discricionariedade administrativa, segundo Hely Lopes Meirelles é a “liberdade de ação administrativa dentro dos limites permitidos em lei”[6]. Essa liberdade não é absoluta, pois deverão ser respeitados os contornos delimitados pela norma legal, principalmente as questões sobre a competência, forma e finalidade do ato.
Cumpre ressaltar que discricionariedade e arbítrio são conceitos distintos. Segundo Maria Di Pietro[7], a discricionariedade de um ato é invocada quando ocorre omissão da lei ou quando a lei prevê determinada competência, mas não dispõe sobre a conduta a ser adotada. Deste modo, a Administração Pública age com discricionariedade ao observar os critérios de oportunidade e conveniência referentes ao ato e na utilidade para a coletividade.
Assim, nasce o conceito de poder discricionário, conforme lição de Meirelles:
Poder Discricionário consiste naquele em que o Direito concede à Administração, de modo explícito ou implícito, para a prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo (MEIRELLES, 2001, p. 110).
O poder discricionário relaciona-se com a faculdade que possui a Administração em produzir o ato administrativo da maneira mais conveniente ao interesse público, possuindo a liberdade de editá-lo ou não. O ato discricionário está sujeito ao controle judicial quanto a sua legalidade, declarando o Poder Judiciário se houve abuso administrativo no ato discricionário.
No que diz respeito à discricionariedade na outorga de direito de usos de recursos hídricos, é necessário observar que os usos da água são conflitantes entre si, não podendo a autoridade eximir-se de dirimir esses conflitos ou utilizar-se da discricionariedade para favorecer interesses pessoais. O conflito, anteriormente citado, refere à administração do bem pelo Poder Público, observando as decisões e diretrizes do sistema de gerenciamento; ao conflito entre os interesses específicos de cada usuário e o interesse da sociedade na preservação quantitativa e qualitativa do recurso.
Deste modo explicita Granziera, em sua obra, as seguintes razões:
No que toca à concessão das outorgas, algumas questões merecem destaque. A primeira consiste na necessidade de articulação entre União e Estados; em segundo lugar a abrangência territorial da outorga; e, por último, a discricionariedade administrativa da concessão da outorga, em que as prioridades para a outorga são definidas no Plano de Bacia Hidrográfica, a ser aprovado pelo comitê de Bacia Hidrográfica, seguindo a orientação da gestão descentralizada e participativa, princípio fixado no art. 1º, inciso IV, da Lei de Águas (GRANZIERA, 2003, p. 179).
Em momento anterior à instituição da Política Nacional de Recursos Hídricos, cabia à Administração a decisão sobre a outorga, porém em face da diversidade de situações abrangidas, era discricionário esse poder, que visava sempre ao interesse público. Com a criação da Lei nº 9.433/97, tem-se disposição legal, em seu artigo 13, que condiciona o deferimento da outorga às prioridades estabelecidas nos planos de recursos hídricos. De acordo com Machado[8], o ato administrativo da outorga é vinculado em algumas partes e possui certa discricionariedade e que deve possuir ampla motivação, manifestando sua legalidade, moralidade e impessoalidade.
- Prazos da Outorga
Existem dois diplomas legais que tratam dos prazos da outorga de direitos de usos de recursos hídricos. A Lei nº 9.433/97 disciplina em seu artigo 16, que toda outorga de recursos hídricos se fará por prazo não superior a trinta e cinco anos, estabelecendo uma norma geral sobre o limite máximo de todas outorgas, tanto para os rios de domínio da União como dos Estados.
A Lei nº 9984/2000 estabeleceu o mesmo prazo de 35 anos como limite para o uso da outorga concedida e ainda inovou, ao dispor em sem artigo 5º, parágrafo 1º, que “os prazos de vigência das outorgas de direito de uso de recursos hídricos serão fixados em função da natureza e do porte do empreendimento, levando-se em consideração, quando for o caso, o período de retorno do investimento”. Outros limites de prazo, segundo a Lei nº 9.984/00, são o de dois anos para a implantação do empreendimento objeto de outorga e de até seis anos para a conclusão da implantação do empreendimento projetado.
O doutrinador Paulo Affonso Leme Machado[9] suscita a questão sobre a renovação e prorrogação dos prazos das outorgas, dispondo que há dois conceitos presentes nas leis 9.433/97 e 9.984/00. No primeiro diploma legal, o legislador afirma que o prazo da outorga é renovável; enquanto que na lei posterior, há norma no artigo 5º dizendo que o prazo poderá ser prorrogado pela Agência Nacional de Recursos Hídricos.
Deste modo e substanciando sua lição Machado afirma que
Há dois conceitos presentes nas duas leis: renovação da outorga e prorrogação da outorga. Renovar a outorga é conceder a outorga ao mesmo outorgado; e prorrogar o prazo da outorga é ampliar o prazo anteriormente fixado. Em ambas as situações o outorga já cumpriu um período anterior de outorga de uso do recurso hídrico (MACHADO, 2002, p. 68).
Os casos de renovação e/ou prorrogação devem ser submetidos ao procedimento de publicidade prévia, não significando a imutabilidade das outorgas e observando, conforme dispõe a lei, as metas, prioridades e avaliações estabelecidas nos Planos de Recursos Hídricos.
- Publicidade e Direito à Informação no Procedimento da Outorga
O princípio da publicidade está presente na concessão da outorga de direito de usos de águas, pois não é um procedimento que interessa somente ao ente administrativo que a concede e o sujeito que a requer, mas também a toda uma coletividade que clama pela preservação e pelo uso racional dos recursos aqüíferos.
Embasado nesse princípio o legislador inseriu a norma presente no artigo 26, III da Lei nº 9.433/97, que diz:“São princípios básicos para o funcionamento do Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos: III – acesso aos dados e informações garantido a toda a sociedade”. Na Lei nº 9.984/00, também foi inserida a publicidade na outorga, no artigo 8º, no qual tem-se a necessidade de publicação, em imprensa oficial e em um jornal de grande circulação, das outorgas concedidas e dos atos administrativos delas decorrentes. Nos Estados, deve-se tornar públicas as outorgas para obedecer ao artigo 37, caput, da CF/88, que dispõe sobre os princípios da Administração Pública.
- O Dever de Fiscalizar a Outorga
O órgão administrativo que concede a outorga deve também regulamentar e fiscalizar os usos. Dessa maneira, a responsabilidade civil, administrativa e criminal do órgão público não se encerra apenas com o ato de emitir a outorga. Essa idéia está centrada nos artigos 29, II e 30, I da Lei nº 9.433/97, a seguir expostos:
Art. 29 – Na implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, competeao Poder Executivo Federal:
II – outorgar os direitos de uso de recursos hídricos, e regulamentar e fiscalizar os usos, na sua esfera de competência;
Art. 30 – Na implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, cabe aos Poderes Executivos Estaduais e do Distrito Federal na sua esfera de competência
I – outorgar os direitos de uso de recursos hídricos e regulamentar e fiscalizar os seus usos (…).
Para o cumprimento dos artigos supracitados é necessária a realização de inspeções periódicas, sendo que urge ao Poder Público possuir recursos que possam possibilitar o deslocamento dos servidores aos locais que se utilizam da outorga, além de diárias e despesas de viagens. Sem a fiscalização, a outorga se torna obsoleta, não trazendo nenhum benefício social ou ambiental.
A questão, que aqui se apresenta, é uma das dificuldades para a implementação da outorga em áreas diversificadas. Assim, mesmo que a autoridade administrativa conceda a outorga a determinado usuário, o ato não termina aí. É muito importante que ocorra a fiscalização e regulamentação dos usos, para que não haja abuso por parte do outorgado e para preservar o bem público. O problema da falta de fiscalização reside na falta de verbas destinadas à contratação de fiscais e para operacionalização do ato de fiscalizar.
Portanto, ressalta Paulo Affonso Lemes Machado[10] que “cabe a propositura de ação civil pública visando ao cumprimento da obrigação de fazer a fiscalização, pois essa atividade não pode ser efetuada segundo arbítrio da Administração”.
- Suspensão da Outorga de Uso de Recursos Hídricos
A suspensão da outorga de uso de recursos hídricos está prevista em lei e, portanto, os casos estão elencados nos incisos do art. 15, da lei 9.433/97, a seguir exposto:
I – não-cumprimento pelo outorgado dos termos da outorga
II – ausência de uso por três anos consecutivos;
III – necessidade premente de água para atender a situações de calamidade, inclusive as decorrentes de condições climáticas adversas;
IV – necessidade de se prevenir ou reverter grave degradação ambiental;
V – necessidade de se atender a usos prioritários, de interesse coletivo, para os quais não se disponha de fontes alternativas;
VI – necessidade de serem mantidas as características de navegabilidade do corpo de água.
O outorgado deve, de acordo com o inciso I do presente artigo, cumprir todas as condições exigidas para a obtenção da outorga, sob pena de ter o seu direito de uso suspenso. Esses direitos e deveres relativos ao outorgado são imprescindíveis para a vigência da outorga, já que por meio das disposições regulamentares sobre vazão, quantidade e qualidade das águas, quantidade de dejetos despejados nos corpos hídricos, é que a Administração fiscalizará o cumprimento das condições impostas ao outorgado.
A suspensão da outorga ocorre devido a fatos supervenientes e pode ser total e parcial. As condições que ensejam a suspensão não estavam presentes no momento da emissão da outorga. A suspensão ocorre pelo acontecimento de fatos que não são de responsabilidade da Administração, tampouco do outorgado. O interesse público é que dita a necessidade desta suspensão[11].
Para que ocorra o ato de suspensão, o Poder Público deve obedecer aos princípios da legalidade e proporcionalidade do ato administrativo. É mister que ele também motive a suspensão, quer seja parcial, total, por prazo determinado ou definitiva. Não há, contudo, necessidade de instauração de processo administrativo para a suspensão da outorga.
Não há necessidade de indenizar-se o outorgado quando da suspensão da outorga, visto que o Decreto nº 89.496/84, ao regulamentar a Lei nº 6.662/79, que dispõe sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos, adotou o princípio da não-indenização nos casos de extinção de concessão ou autorização.
- Infrações relativas à Outorga de Recursos Hídricos
A Lei nº 9433/97, em seu artigo 49, inciso I, estabeleceu disposições disciplinando infrações e penalidades para usuários de recursos hídricos. Constituem-se em infrações a utilização das águas sem a outorga de direito de uso proferida por autoridade competente, ou em desacordo com esta; a execução de obras em desacordo com os termos da outorga; a declaração incorreta de volumes utilizados; a fraude nas medições e fiscalização dos usos de recursos, bem como a desobediência às normas estabelecidas nos regulamentos administrativos e disposições da lei supracitada.
Já as penalidades estão elencadas no artigo 50 da mesma lei, já que podem ser divididas em advertência, multa, embargo provisório e embargo definitivo, dependendo da gravidade da infração. Nas hipóteses de advertência e embargo provisório, a Administração Pública fixa prazos para correção de irregularidades ou realização de condições inerentes à concessão da outorga.
No caso do embargo definitivo, enfoca Machado[12] que esta penalidade ocasiona a revogação da outorga, podendo a Administração acrescer a obrigação de o infrator repor o antigo estado dos recursos hídricos. Portanto, de acordo com os artigos 58 e 59 do Código de Águas, a Administração fará ela mesma a reconstituição do estado das águas públicas, leitos e margens ou exigirá do outrora outorgado que realize essa tarefa, dispondo da ação civil pública como instrumento processual eficaz.
- Não exigência da Outorga de Direito de Usos de Recursos Hídricos
O art. 12, § único, incisos I,II,III, da lei 9.433/97 estabelecem quais usos dos recursos hídrico independem da outorga:
- 1° – Independem de outorga pelo Poder Público, conforme definido em regulamento:
I – o uso de recursos hídricos para a satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais, distribuídos no meio rural;
II – as derivações, captações e lançamentos considerados insignificantes;
III – as acumulações de volumes de água consideradas insignificantes.
Nessas três situações acima expostas, há um direito subjetivo do usuário em usar os recursos hídricos sem a intervenção do Poder Público. De todo modo, há a necessidade, conforme o artigo 84, inciso IV da Constituição Federal de 1988, da edição de regulamento que discipline o critério da insignificância, além de levar em consideração as diferenças existentes entre as bacias hidrográficas. É dever do Poder Público inspecionar e constatar se o que foi estabelecido nos incisos citados está sendo cumprido, respeitando a proporcionalidade de cada bacia hidrográfica e o quanto ela dispõe de uso sem que intervenha na qualidade e quantidade de água disponível.
Machado[13] descreve que os casos de não-exigibilidade da outorga não se confundem com a dispensa deste mesmo instituto, pois esta última ficara ao juízo discricionário do órgão público. Na verdade, o que ocorre é um direito de as pessoas utilizarem a água, sem a necessidade da outorga, por determinação legal regulamentada. Cumpre ressalvar que, mesmo sem a outorga, não se exime a Administração da fiscalização dos usos das águas, para assegurar a não poluição e a manutenção da qualidade e quantidade dos recursos hídricos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo analisou o instituto jurídico da outorga de direito de uso de recursos hídricos, com o objetivo de explicitar o tema e ressaltar aspectos relevantes. Procurou-se também intertextualizar o tema com o momento sócio-econômico vivido no país e no mundo, ressaltando-se a necessidade de um aprimoramento da ferramenta jurídica para uma maior proteção e preservação dos recursos hídricos, visando à manutenção da qualidade de vida de toda população. Ainda, indica-se os momentos nos quais o legislador aponta para uma maior preocupação com a questão hídrica, além de enfatizar as principais características da outorga, como os usos que estão sujeitos ao instituto, os casos de não-sujeição, as maneiras de se obter a outorga e as infrações e penalidades, dentre outros.
Destarte, pode-se ter uma idéia mais clara sobre a função da outorga e a necessidade de se utilizá-la adequadamente nos dias atuais com o intuito de garantir os recursos hídricos de maneira qualitativa e qualitativa suficientes para o consumo humano, animal e, também, para o desenvolvimento econômico-social, sempre pautando-se pelo desenvolvimento sustentável.
O artigo dispõe sobre a outorga de direito de usos de recursos hídricos fundamentado por uma análise dos diplomas legais, além da doutrina específica relacionada ao assunto. Desse modo, o estudo do instituto pretendeu mostrar os requisitos, formas prescritas em lei aplicáveis ao gerenciamento dos recursos hídricos.
Tendo como base o aproveitamento máximo das águas em suas diversas utilidades, o legislador destaca o uso múltiplo dos recursos hídricos como ponto extremamente importante para o desenvolvimento social e econômico. Dessa idéia, conclui-se que a outorga de uso de recursos hídricos deve pautar-se por conciliar os anseios sociais e econômicos, não se concedendo o uso para apenas uma finalidade, prejudicando outras várias.
O legislador, ao editar as leis que disciplinam sobre a proteção legal aos recursos hídricos de maneira ampla e, especificamente, em relação à outorga disciplinou os requisitos necessários a serem cumpridos pelo outorgado para a proteção qualitativa e quantitativa dos recursos para que se possa ter um desenvolvimento social e econômico sustentável, priorizando a preservação manutenção dos recursos naturais, principalmente a água.
A edição de leis é importante para que sejam traçados requisitos que permitam o uso múltiplo das águas sem que haja o esgotamento dos recursos ou danos ambientais sérios, conciliando os usos econômico, social e doméstico.
Entretanto, é necessário ressaltar que além de criar os requisitos, enumerar características e disciplinar o funcionamento do instituto, deve o Poder Público fiscalizar as outorgas concedidas, suspendendo aquelas que não atendam ao ordenamento legal e, também, punindo aqueles que tentam burlar a lei. Outra questão importante é que, apesar de leis, é necessário que toda população se conscientize da importância dos recursos hídricos e se disponham a gastá-los e poluí-los em menor intensidade.
Ressalte-se que as considerações aqui privilegiadas não pretendem encerrar essa temática, pois há a necessidade de um aprofundamento maior em torno dessas questões. Porém, as análises parecem sinalizar para a compreensão de que o instituto jurídico da outorga de direito de usos de recursos hídricos ajuda sensivelmente o mérito do desenvolvimento da cognição a respeito deste tema.
Ainda cumpre ressaltar que, apesar da evidente evolução que as leis de proteção aos recursos hídricos trazem ao ordenamento jurídico-ambiental brasileiro, não bastam apenas as normas para que se proteja o esgotamento das águas. É necessário que todos se conscientizem da seriedade do problema e, juntamente com o Poder Judiciário, a Administração Pública tomem a iniciativa de campanhas, essencialmente educativas, para mostrar a relevância da preservação da água para as gerações futuras. A sociedade deve ser integrada à gestão de recursos hídricos, em consonância com o Poder Público para fortalecer e engrandecer todo o movimento de proteção e utilização racional dos recursos hídricos.
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Notas:
[1] Diário Oficial da União de 3.7.2000, p. 25-30.
[2] Cf. Paulo de Bessa ANTUNES, Direito ambiental, 2004, p. 826.
[3] Cf. Paulo Affonso Leme MACHADO, Recursos Hídricos: direito brasileiro e internacional, 2002, p. 60.
[4] Cf. Paulo Affonso Leme MACHADO, Recursos Hídricos: direito brasileiro e internacional, 2002, p. 63.
[5] Cf. Paulo Affonso Leme MACHADO, Recursos Hídricos: direito brasileiro e internacional, 2002, p. 67.
[6] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, 2001, p. 11.
[7] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, 2004 p. 165-7.
[8] Cf. Paulo Affonso Leme MACHADO, Direito ambiental brasileiro, 2002, p. 378.
[9] Cf. Paulo Affonso Leme MACHADO, Recursos Hídricos: direito brasileiro e internacional, 2002, p. 68.
[10] Cf. Paulo Affonso Leme MACHADO, Recursos Hídricos: direito brasileiro e internacional, 2002, p. 70.
[11] Essa disposição é acolhida pelo princípio da supremacia.
[12] Cf. Paulo Affonso Leme MACHADO, Recursos Hídricos: direito brasileiro e internacional, 2002, p.75.
[13] Cf. Paulo Affonso Leme MACHADO, Recursos Hídricos: direito brasileiro e internacional, 2002, p. 74.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BORGES, Edilson Barbugiani. Da outorga de direitos de uso de recursos hídricos. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 out. 2014. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.50400&seo=1>. Acesso em: 30 out. 2014.