Rio São Francisco divide interesses e o clima acentua os conflitos

Na última reportagem da série sobre o São Francisco você vai conhecer a parte do rio, abaixo de Petrolina e Juazeiro, até a foz. Nossa equipe rodou e navegou mais de 3.500 quilômetros, em cinco estados, para mostrar o mais belo trecho do Velho Chico.

É também um dos mais discutidos pela exploração intensa e cada vez maior. A transposição da água para os sertões é só o último capítulo de uma longa história.

O São Francisco que se vê, logo abaixo da barragem de Sobradinho, tem um caprichoso bordado, um emaranhado de ilhas. Ali, religiosos foram linha de frente, no início da colonização portuguesa.

No município pernambucano de Orocó, tanto a capela de São Miguel, como a igreja que dá nome à ilha de São Felix, são de muitos séculos. A igreja sofreu várias reformas, mas conserva parte da estrutura original, de pedras do rio.

O santuário é protegido e cultuado pelos agricultores e pescadores que vivem ao redor. Depois dos primeiros exploradores, a ocupação da região se consolidou com a criação de gado.

Houve um momento em que o São Francisco chegou a ser chamado de rio dos currais. Séculos atrás, eram centenas e centenas, ocupando as margens. E que também penetraram pelos sertões. Dando origem àquela que ficou conhecida como a civilização do couro.

Ela forjou a mais clássica imagem do nordestino: a do vaqueiro. A partir do chapéu, couro é proteção para a correria no meio da catinga e orgulho de gente como Zé Luiz e Josenei, amigos de infância e de lida, há mais de 50 anos. “A gente se sente corajoso. No sertão, vaqueiro não estando encourado, não é vaqueiro”.

A região de Curaçá, na margem baiana do São Francisco, já foi grande centro de criação de bovinos, que perderam espaço para bodes e ovelhas, mais resistentes, fáceis de criar. Ninguém precisa de vaqueiro a cavalo para ir atrás de animal fugido.

As chuvas do início do ano, que trouxeram os tons verde, são cada vez mais raras, assim como as cabeças de gado. “Tinha fazendeiro que tinha 300, hoje tem cinco. Outros, nenhuma. Esmoreceram com a seca, não querem trabalhar. Perderam a fé, acham que o mundo vai acabar… Mas enquanto eu for vivo, não paro”, diz um criador.

Perto dalí, o vaqueiro Deró é outro que insiste com o gado. A propriedade tem até vaqueiro novinho em folha. Pedro, de 12 anos. Ele estuda, quer ser agrônomo, mas também veste a armadura, sob medida. Deró é policial militar aposentado. Passou a vida na cidade, mas diz que voltou pra ficar. “Vou esperar que chegue um ramal até aqui. A gente planta um capim, tem água doce pra beber, tomar banho”, diz Deroaldo Rodrigues de Carvalho, vaqueiro.

Quem não quer que o rio chegue próximos às suas casas? Ideia antiga é a transposição do São Francisco, que vai saindo papel. Um megaprojeto, ao custo de oito bilhões de reais, com quase 500 quilômetros de canais cortando sertões de três estados.

A água captada em pontos como o de Cabrobó, vai correr quase sempre por gravidade, mas também terá que subir, em etapas, até 300 metros, puxada por estações elevatórias. Rodamos mais de cem quilômetros seguindo o chamado eixo norte do sistema.

Ao longo do canal, são construídas várias barragens, para formar reservatórios. O que vai existir no município de Jati, no Ceará, vai ocupar toda uma área que está desmatada. Ao todo, 27 bilhões de litros de água. E este é um dos menores reservatórios. Existem outros com dez vezes essa capacidade. A partir de lá, o canal segue por mais 160 quilômetros, até Cajazeiras, na Paraíba. E a partir de lá a água ainda vai poder chegar ao Rio Grande do Norte.

Com mais de 80% das obras concluídas, o sistema está em fase de testes. Já se vê água, mas ela ainda não corre. O vento é que dá a impressão de movimento.

Mas os canais já mexeram com a vida de muita gente. Foi preciso remover e reassentar centenas de famílias em vilas ocupada há menos de um ano. Todos terão direito a cinco hectares de terra para produzir, sendo pelo menos um com irrigação, fora a área das moradias.

As casas básicas têm uma varandinha na frente. Entrando na casa, uma sala, três dormitórios, banheiro e cozinha. Ao fundo, um terreno de 50 por 100, cinco mil metros quadrados. O pessoal pode até ampliar a casa.

Cícero, que tem quatro filhos, está pensando nisso, mas por enquanto só plantou no local. “Tem milho, cana, macaxeira, melão, jerimum. Ovelha e galinha. Logo quando eu saí de lá, tava meio apavorado. Vou perder tudo… Vendi tudo… Mas aqui eu vi que posso começar tudo outra vez”, conta Cícero Joaquim Taveira, agricultor.

Mas e quem ficou onde estava e viu a vida mudar, de repente? Em um povoado, onde vivem 45 famílias, a pouco mais de um quilômetro do canal, o povo diz que o desmatamento eliminou áreas de plantio e de catinga, pra criar animais soltos. Caminhos foram bloqueados os bichos se perderam…

O andamento da obra às vezes gera dúvidas, como uma ponte interrompida, por exemplo. A própria circulação de estranhos assusta quem vivia isolado. No entanto, os moradores também enxergam o lado bom, dos empregos que foram criados e a esperança de ter água na torneira e não trazida por caminhão pipa, é enorme. “Nossa dificuldade, desde sempre, é a agua. Se a gente tiver acesso a essa água, todos os transtornos que a gente teve, será superado”, diz Ivanice Francisca da Silva, agricultora.

A previsão do governo é terminar a obra até o fim do ano. “A água deve chegar ao Ceará no último trimestre de 2016 e no estado da Paraíba e no Rio Grande do Norte no primeiro trimestre de 2017”, declara Osvaldo Garcia, secretário de Infraestrutura Hídrica – Ministério da Integração Nacional.

A distribuição da água vai depender de outras obras de governos estaduais e municipais. Além de servir para consumo humano e de animais, diretamente, a água do São Francisco pode tornar perenes cursos d’água intermitentes, que desaparecem na seca. Exemplos não faltam, como o que acontece com o chamado Riacho do Navio.

O Riacho do Navio depende de duas barragens. Uma delas, a do Juá, que está em mau estado, precisando de reforma urgente. O lago, que já teve água até onde a vista alcança, está baixo. A vizinhança quer a água do São Francisco, mas tem medo do que ela pode causar. E pensar que a inauguração da barragem, em 1982, teve show até do próprio Luiz Gonzaga…

A segunda parte da reportagem segue nesse ritmo. Música, história, turismo, produção de energia, agricultura… E uma questão fundamental: o Velho Chico, vítima de tantas agressões, tem água para todo mundo?

Fonte: G1
Foto: Divulgação

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