Autor de livro sobre práticas sustentáveis defende que os rios Tietê e Pinheiros aguardam uma transformação civilizatória para poderem viver sem serem sufocados pela cultura de massas
São Paulo – No Dia Mundial da Água, celebrado hoje (22), a cidade de São Paulo tem pouco a comemorar e muito a refletir. Quem olha para os seus rios, pelos menos os principais, Tietê e Pinheiros, sabe o quanto a ordem vigente com a cultura de consumo de massas, a sobreposição dos interesses do capital sobre questões sociais e a omissão das autoridades tem prejudicado os recursos naturais.
“Temos de ter uma cultura de apropriação dos rios. É preciso considerar que os rios são nossos amigos, e não depósitos de lixo. Isso tem de mudar. O rio não é sujo, sujos somos nós, que poluímos os rios”, afirma o pesquisador e ecologista Ricardo Raele, autor do livro Análise Ambiental: Sustentabilidade, Cenários e Estratégia, lançado em 2015.
Para Raele, os rios são termômetros de nosso estágio civilizatório. “Como pesquisador, acredito que é importante que os governos entendam que existem formas diferentes de construir o processo civilizatório. Existem muitas maneiras de resolver o problema do esgoto, dos resíduos sólidos, enfim, são novas maneiras que não passam pelo jeitão antigo que é fazer obras faraônicas”, afirma.
Qual a importância de olharmos para os rios Pinheiros e Tietê num dia como hoje?
O dia de hoje é muito especial, mas a água se faz presente em nossas vidas todos os dias. Hoje é importante fazer uma pausa para pensar sobre a água, fazer uma reflexão. O Tietê e o Pinheiros são os rios mais importantes de São Paulo e eles deveriam ser vistos como o que há de maior valor na cidade, porque os rios significam vida para a cidade. É fundamental repensar, buscar um espírito novo daqui para a frente para esses rios.
O que a despoluição desses rios poderia agregar para a cidade?
É possível falar em cinco instâncias: social, econômica, política, cultural e estratégica. Mas do ponto de vista social, os ganhos são os mais importantes. Com esses rios limpos, nós poderíamos ter um parque linear gigantesco. A cidade seria cortada pelos rios e pelo parque, com árvores, atraindo pássaros, por exemplo, e equipamentos culturais também poderiam atrair as pessoas, como um museu de história natural, com dados da fauna e flora construída nesses rios, e que já existia antes da poluição. Poderia também ter outros equipamentos como restaurantes, transporte fluvial – seria um conjunto bonito e agradável para a população desfrutar. Seria, senão o maior, um dos maiores parques lineares do mundo.
E qual o maior desafio para a cidade se apropriar desses rios?
Das cinco instâncias que já mencionei, vamos para a questão cultural. Essa é uma questão fundamental porque ela faz com que as pessoas tenham essa visão e promovam uma cultura de não poluição da água ou também uma cultura no sentido de se mobilizar para produzir ações para melhorar a água dos rios da cidade. Temos de ter uma cultura de apropriação dos rios. É preciso considerar que os rios são nossos amigos, e não depósitos de lixo. Isso tem de mudar. O rio não é sujo, sujos somos nós que poluímos o rio. O rio em si é limpo. Se você tirar a ação do ser humano, daqui a algum tempo o rio estará limpo. A natureza tem essa capacidade de renascer. Na medida que a população e a cultura dos produtos descartáveis sejam revistas, essa cultura em massa que vem de longa data deixaria de sufocar a vontade que os rios têm de viver.
E a questão política?
Nesse campo, as pessoas precisam dialogar com as autoridades que eventualmente direcionam investimentos e financiamentos de pesquisas tecnológicas, ou campanhas, as pessoas têm de se mobilizar em conjunto com as autoridades em torno de projetos. Seria preciso um diálogo sobre projetos para que a gente parasse de sujar esses rios. Mas isso acontece todo dia e toda hora.
O ganho econômico, indo para a segunda instância que relacionamos, de um projeto que levasse em conta a cultura da população, as tecnologias de microescala, seria muito grande porque São Paulo se tornaria mais agradável para atividades como o turismo e também para quem mora.
E quanto aos produtos que usamos?
Na questão da cultura, as pessoas precisam entender que o rio em si, do ponto de vista processual, é limpo. O que suja o rio são as dinâmicas sociais da cultura que a gente vive hoje, como a cultura dos descartáveis, a cultura do consumo em massa, enfim, você tem uma indústria em que a química inorgânica é agressiva, ela ainda é a principal forma de síntese de produtos, como os de limpeza, e por aí vai. Falta às pessoas a consciência de uma cultura verde, que olhe para o futuro. É o que também chamamos de química verde.
A boa política busca o bem comum, e falta mobilização junto às autoridades competentes para produzir campanhas, mobilização, enfim, fluxos de comunicação na sociedade, informando de uma nova civilização que precisa surgir com produtos orgânicos ou de biomimética, que a gente sabe que se voltam para o futuro, porque não são agressivos para o meio ambiente.
Qual é o papel dos governos nessa nova ordem?
Como pesquisador, acredito que é importante que os governos entendam que existem formas diferentes de construir o processo civilizatório. Existem muitas maneiras de resolver o problema do esgoto, dos resíduos sólidos, enfim, são novas maneiras que não passam pelo jeitão antigo que é fazer obras faraônicas. As soluções passam por uma mobilização social, por tecnologias, soluções e cultura de microescala. Mas os governos hoje ainda estão presos nos velhos paradigmas. O futuro precisa fazer parte da agenda dessas pessoas.
Mas o que são as ações de microescala?
São as ações que você consegue efetuar e resolver dentro do teu universo particular, mas que têm uma consequência positiva para a coletividade. Por exemplo, onde não tem rede coletora de esgoto é você ter uma fossa séptica bem desenhada na sua casa, ter uma composteira no quintal para não jogar matéria orgânica na água, ou ainda você contribuir para não descartar lixo orgânico no aterro, mas usar como adubo, permitindo a você mesmo produzir hortaliças, enfim, há muitas soluções, a maior parte delas pode ser conhecida na internet. Mas o que é importante é que não se trata de ter uma solução bilionária. O governo, em vez de ter o papel de fazer obras faraônicas para uma parcela da população, poderia dar condições às pessoas para resolver o problema em um escala menor, com o apoio das universidades, e assim poderíamos fomentar a cultura de soluções de microescala de fato.
Fonte: RBS
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