Belo Horizonte se desenvolveu sobre as bacias hidrográficas dos ribeirões do Onça e Arrudas, sendo cortada por 161 cursos d’água. O que inicialmente poderia parecer um tesouro para o futuro da capital, com abundância de água distribuída por um total de 671 quilômetros de cursos, se transformou em pesadelo moderno, com quase um terço dessa rede canalizada, toda ela poluída. Muito desses córregos foram sepultados sob o asfalto e hoje só são lembrados quando temporais como o de domingo os trazem de novo à tona, causando inundações, deixando pessoas ilhadas e arrastando carros e o que mais houver pela frente. Pior: especialistas ouvidos pelo Estado de Minas não avistam uma solução de curto prazo para o problema. Para evitar as recorrentes inundações, seria necessário mudar a legislação de uso e ocupação do solo, além de implantar obras de urbanização, drenagem e de aumento de permeabilidade do solo, para que a água da chuva seja drenada pela terra e pelos cursos d’água.
Os transtornos se assentam no tripé formado pela crescente impermeabilização do solo, intervenções geomorfológicas feitas ao longo dos anos nos cursos d’água e canalização inadequada de ribeirões e córregos (veja arte), sem respeito aos traçados esculpidos pela natureza. Como resultado, a população convive com danos de toda ordem, desde perdas materiais até a morte de pessoas. E o número de vítimas pode ter aumentado: no Barreiro, uma das áreas mais atingidas pelo temporal de domingo, continuava desaparecido até a noite de ontem o motorista Wanderley Silva de Freitas, de 45 anos, que sumiu após cair em um canal durante a tempestade.
“A chuva de domingo superou o esperado para o mês inteiro”, afirma a meteorologista Natália Cantuária, do TempoClima PUC Minas. A média histórica para setembro é 40,5 milímetros, mas apenas no domingo foram 44,1 milímetros, e somente das 21h às 22h, segundo o serviço de meteorologia. Até ontem, o acumulado do mês era de 65 milímetros. De acordo com o instituto, o temporal foi causado por frente fria que veio do Sul do país. Para os próximos dias, a previsão é de tempo ensolarado a parcialmente nublado, com declínio na umidade relativa do ar, que deve ficar entorno de 30%.
Não bastassem problemas na impermeabilização do solo eas canalizações dos cursos d’água, obras que poderiam minimizar os problemas tiveram prazos de conclusão prorrogados, como o complexo da Avenida Várzea da Palma, a segunda etapa da Bacia do Córrego Santa Terezinha e o Córrego do Túnel (veja quadro). A obra do Córrego São Francisco, na Avenida Assis das Chagas, prevista para o segundo semestre do ano que vem, está paralisada desde abril.
Somados esses fatores, a qualquer precipitação áreas da cidade sofrem, como voltou a ocorrer no entorno da Avenida Francisco Sá, no Bairro Prado, Região Oeste, e da Avenida Cristiano Machado, na Região Nordeste. No último temporal, a força da água foi tanta nesses locais que veículos foram arrastados, calçadas ficaram encobertas e pedestres tiveram de se abrigar dentro de estabelecimentos.
De acordo com a Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap), com o crescimento urbano desordenado, parcelas do solo que deveriam permitir a infiltração da água foram impermeabilizadas. Além das intervenções que ao longo dos anos alteraram as características naturais dos cursos d’água, o maior problema enfrentado pela administração municipal é o lançamento de resíduos sólidos nas estruturas de drenagem urbana, como bocas de lobo.
O coordenador do Projeto Manuelzão, de recuperação da bacia do Rio das Velhas, Marcus Vinícius Polignano, afirma que a política ambiental da capital voltada para a gestão das águas precisa ser revista. “A cidade ora tem problema com a falta d’água, ora com a falta de estrutura para receber as chuvas, o que resulta em danos e perdas para todo mundo”, avalia. Ele reforça o despreparo da capital para lidar com o período chuvoso. “Nem foi uma chuva fora do comum. Foi um volume significativo, mas não por um período longo. Com um volume como aquele por mais horas, toda a cidade de Belo Horizonte ficaria inundada”, afirma.
Polignano afirma ainda que é necessário redobrar a atenção em relação aos dois terços de cursos d’água da capital que ainda não foram canalizados. “Se a cidade transforma o córrego em avenida, não pode se espantar quando a avenida vira córrego. As obras não levam em conta o traçado da natureza. Nessa briga, vamos sempre perder”, afirma. O especialista lembra ainda que há cidades como Seul, na Coreia do Sul, que reverteram processos de canalização dos córregos.
Foto: Rodrigo Clemente/EM/DA Press
Fonte: Estado de Minas