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Banho de caneca, filas na madrugada e até roubo de água: como é viver na seca

“É desumano. Chegou num ponto que a gente começou a ver situações inacreditáveis. Uma pessoa chegou na bica com uma arma e falou pro pessoal: ‘passa a água!’ Olha a inversão de valores que a gente tem.”

Cenas como a descrita acima assustaram Victor Terraz, morador de Itu (102 km de São Paulo), a cidade mais afetada pela seca que assola o Estado de São Paulo. Assim como os outros 163 mil ituanos, ele tem sofrido com a falta de água na região, que já está há nove meses em racionamento.

A última vez que Victor e sua esposa Silvia tiveram água correndo pelas torneiras foi no dia 8 de setembro. De lá para cá, quase 60 dias se passaram e eles se viram obrigados a alterar suas tarefas diárias mais básicas para se adaptarem à “vida na seca”.

Moradores na caixa d'água em Itu / Crédito: BBC Brasil
Idosos, adultos e crianças: moradores de todas as idades buscam água para suprir a seca em Itu

“Começamos a tomar banho de caneca, dar descarga era só uma vez a cada três dias, a louça ficava mofando na pia porque não tinha água para lavar”, contou Victor à BBC Brasil.

“Eu saio do trabalho e vou direto para a faculdade. Chego em casa às 23h e é nessa hora que eu consigo sair para ir na bica pegar água. Só que lá você passa uma, duas, às vezes três horas na fila para encher um galão. E no dia seguinte às 6h tem que estar de pé.”

Ao entrar no apartamento localizado no Parque Industrial, um dos bairros em situação mais crítica em Itu, ele se desculpa: “Por favor, não repare a sujeira aqui em casa.” Pela casa estavam espalhados galões, baldes e potes, mostrando que o jeito é armazenar água onde for possível.

No banheiro, baldes e bacias ocupam o lugar do box, um pote de sorvete virou a fonte de água para lavar as mãos e o rosto, e o vaso sanitário vive fechado para amenizar o mau cheiro. “Passei produto, Bom Ar, mas não tem muito jeito, o cheiro é esse mesmo, porque não tem descarga há meses, é só balde”, lamenta Silvia.

Silvia e Victor / Crédito: BBC Brasil
Silvia e Victor não recebem água em casa há dois meses

‘Calamidade’

O taxista Luiz Carlos da Costa também sentiu na pele o problema da seca em Itu. Depois de 20 dias sem abastecimento, ele chegou à conclusão de que “sem água, você perde a dignidade.”

“Fiquei dois dias sem tomar banho porque não tinha água. Minha casa ficou imunda, num estado de calamidade”, conta.

Para amenizar o problema, ele ia buscar água na bica do bairro enquanto tentava solicitar um caminhão pipa para a empresa que administra o abastecimento de água em Itu.

“Liguei várias vezes na Águas de Itu, ficava uma hora esperando só para ser atendido. Pedi para eles mandarem o caminhão, até me prontifiquei a ficar aqui esperando, mas só veio um nesse domingo, depois que eu já tinha comprado 2.500 litros de água.”

A Águas de Itu é uma empresa privada que tem a concessão da prefeitura para o abastecimento de água da cidade. Em meio à crise, a companhia está disponibilizando caminhões pipa para levar água a residências, escolas, hospitais e prédios públicos. São cerca de 34 a 38 caminhões pipa por dia, segundo a empresa.

Filas na madrugada / Crédito: Divulgação
Na falta de água, moradores fazem fila até de madrugada para abastecer galões nas bicas

Mas os caminhões viraram alvo de ‘ataques’ da população. No desespero da falta de água, alguns moradores chegaram a fazer emboscadas para conter os caminhões da empresa antes que eles chegassem ao seu destino.

“Aqui na rua, o caminhão foi passar só 1h30 da manhã, porque ele senão ele é atacado”, explica Luiz Carlos.

“Os caminhões sofrem retaliações, teve um motorista de um deles que foi espancado, tudo isso por causa da briga pela água. Agora os caminhões que entram na cidade são escoltados pela guarda municipal para não dar problema”, conta Victor.

Conflitos

Buscando água nas bicas e caixas d’água espalhadas pela cidade, Luiz Carlos já viu de tudo. “A situação lá é desesperadora”, resume.

“As filas são enormes, todo lugar que tem um poço, uma caixa, você tinha que ficar horas na fila e era uma briga, uma desavença pra ter água, pra encher um galão”, conta.

Além das bicas, a prefeitura colocou algumas caixas d’água em bairros da cidade para que a população tivesse mais lugares para se abastecer.

“Não tem organização, é briga atrás de briga, não tem controle nenhum. Às vezes você está esperando, e o cara põe uma mangueira na torneira e vai encher quatro caixas de 1.000 litros no carro dele. Aí você discute, briga, mas ele também não tem culpa”, relata Victor.

Garrafas de água / Crédito: BBC Brasil
Para driblar a seca, moradores juntam todos os tipos de recipiente que possa armazenar água

A água virou tamanha raridade em Itu que, segundo relatos, passou a ser motivo até para roubo. Victor contou que já houve caso de assalto à mão armada na bica – não para roubar o carro ou a carteira, mas sim o galão de água dos primeiros da fila.

“Eu vi idosos correndo atrás de caminhão de água, eu chorei…nunca vi isso na minha vida”, lamentou Luiz Carlos.

Negócio

A escassez fez com que a água – e tudo relacionado a ela – virasse um ‘negócio’ lucrativo em Itu. Os preços de garrafas e galões de água mineral subiram no supermercado e, fora dele, os valores são ainda mais inflacionados.

Um caminhão pipa com 15 mil litros de água pode custar entre R$ 800 e R$ 1.500 em Itu. O preço dele fora do período de escassez é cerca de R$ 400.

Um dos produtos mais procurados pelo ituano hoje em dia para armazenar água no quintal, a caixa d’água, também sofreu um superfaturamento na cidade – uma de 1.000 litros, que custaria entre R$ 350 e R$ 400, pode sair por R$ 500 ou mais. A bomba d’água também ficou mais cara.

Morais, vendedor de galões / Crédito: BBC Brasil
Morais decidiu fazer dinheiro vendendo galões nas bicas de Itu

Muitos vendem galões de plástico perto das bicas da cidade. Um deles, identificado apenas como Morais, contou que “o menor, de 20 litros, custa R$ 20…esse maior, de 50 litros, é R$ 100”. Isso sem a água, que “a pessoa tem que encher aqui na bica.”

Morais começa o serviço às 5h e termina às 18h. Segundo ele, dá para vender uma média de 30 galões de 50 litros por dia.

Mesmo com o negócio lucrativo, ele torce para que as chuvas voltem e acabem com a seca na cidade. “Também tive que buscar água na roça.”

Fonte: SANEAMENTO BÁSICO, O SITE / BBC

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