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Desvio do rio São Francisco transporta o semiárido dos tempos da indústria da seca para a era do hidronegócio,

Da janela de sua casa, no distrito de Curralinho, em Cabrobó, sertão de Pernambuco, o agricultor Leônidas Landin contempla o que jamais imaginara ver na vida: um canal gigantesco, com quase 20 metros de profundidade, pelo qual poderão passar, atravessando a sua propriedade, até 8,6 milhões de m³ de água a cada dia, mais que o triplo da produção normal do sistema Cantareira, na Grande São Paulo. É o canal maior da transposição do rio São Francisco, a obra de R$ 8 bilhões com que o governo federal pretende assegurar abastecimento de água para 12 milhões de nordestinos.

Iniciada em 2006, a transposição é um conjunto de canais, aquedutos, túneis e açudes com 477 quilômetros de extensão que pretende distribuir a água retirada do rio, na divisa entre Bahia e Pernambuco, para 390 cidades de quatro Estados (Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte), dando-lhes o que o governo chama de garantia hídrica. Seu término está previsto para 2017, mas alguns trechos já deverão estar em funcionamento em 2015.

Cigarro de palha na boca, Landin contempla a obra de engenharia como se fosse um elemento a mais da paisagem tórrida do semiárido nordestino. Oito anos após iniciada a construção, nenhuma gota passou por ali. Mas sua preocupação atualmente é bem outra: a água da cisterna em frente à sua casa, onde cabem 16 m³ (16 mil litros), começa a minguar.

O cilindro de alvenaria –construído em menos de dez dias pelo sindicato rural da cidade, com cerca de R$ 2.000 vindos de recursos federais– é o que garante às nove pessoas da família água para beber, cozinhar e tomar banho. Na última vez em que se esvaziou, ficaram dois dias sem água, até a chegada do caminhão-pipa enviado pela prefeitura.

Ficar sem água, porém, é cena cada vez mais incomum no Nordeste, mesmo no semiárido, região onde moram a família Landin e outros 22 milhões de pessoas (40% da população do Nordeste) e onde as chuvas são pouco previsíveis. Um sistema improvisado de carros-pipa, cisternas, poços e açudes já supre, ainda que de forma irregular, as necessidades básicas da população, mesmo a mais isolada.

É uma realidade muito diferente das muitas secas do passado. Algumas das piores estiveram associadas ao fenômeno El Niño, aquecimento anormal das águas do oceano Pacífico que costuma ser acompanhado de estiagens severas na Amazônia e no Nordeste. Um El Niño forte como o de 1982-83, que prolongou a seca iniciada em 1979, pode ter matado mais de 100 mil habitantes.

No início do segundo semestre de 2014, o fenômeno se repete, mas os dados então disponíveis indicavam que permaneceria moderado. Vindo com força, porém, ou seguido por outro tipo de perturbação oceânica no vizinho Atlântico capaz de reacender a fornalha da seca no final do ano, morreriam mais reses, muitas lavouras se perderiam e as cidades do semiárido enfrentariam dificuldades de abastecimento, mas não se repetiriam as cenas dantescas de fome como em décadas passadas –não com um governo federal disposto a desembolsar R$ 9,1 bilhões para minorar os efeitos da seca, como fez em 2012-13.

INDÚSTRIA DA SECA E HIDRONEGÓCIO

No discurso oficial, a transposição do São Francisco vem para garantir que sempre haverá água para todos. Para os opositores da obra, ela é o exemplo maior do que já vem sendo caracterizado como o hidronegócio: o uso comercial da escassa água da região para a produção industrial e agrícola de bens muitas vezes inadequados para o clima da região, mais em benefício de grandes empresários do que da população em geral.

Landin vai erguer com o próprio dinheiro uma outra cisterna em seu quintal. Mesmo morando ao lado do canal, ele crê que a água não seja para ele, pois não poderá pagar por ela. “Quanto é que vai custar uma água dessa, major?” pergunta, após o repórter informar que o valor da obra já está em R$ 8 bilhões.

O governo federal não tem resposta para a pergunta do agricultor. Promete, porém, que não cobrará pelo custo da obra, apenas pela manutenção do sistema. E também promete partilhar a água com cerca de 3.000 famílias que vivem próximas ao canal.

AS ÁGUAS NO NORDESTE

Até três anos atrás, quando a região passou a enfrentar a pior seca das últimas oito décadas, Landin tinha água em abundância. O açude Terra Nova se enchia com frequência e levava água por pequenos riachos até seu sítio. O agricultor chegou a colher 30 toneladas de cebola numa safra.

“Ave Maria, se tivesse água, nós tava era rico. A riqueza da gente é saúde e água.”

Com apenas 4% de sua capacidade, o açude é incapaz de abastecer os moradores da região. E o Terra Nova não é o único quase seco. Os grandes reservatórios terminaram o frustrado período chuvoso de 2013/14 com menos de metade de sua capacidade.

E só costuma começar a chover na região a partir de outubro, quando inicia o período menos seco, que termina em abril. A caracterização de seca ocorre quando não chove nesse período ou quando a chuva anual fica abaixo da média de 700 mm.

A CADA 24H NO SÃO FRANCISCO

Chuvas normais permitem armazenar 62 km³ (62 bilhões de m³) de água nos cerca de 70 mil pequenos e grandes açudes construídos ao longo de dois séculos no semiárido. Essas obras são apontadas como os pilares da indústria da seca, nome dado ao modelo de grandes construções que beneficiavam proprietários mais ricos, em detrimento da população mais pobre. Com os açudes cheios, há água para assegurar a cada habitante do Nordeste os 110 litros diários preconizados pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Mas há dois problemas: nem sempre chove para encher os reservatórios, e só 25% da água abastecem diretamente a população. Os outros 75% vão para a indústria e a irrigação.

Rubem Siqueira, da CPT (Comissão Pastoral da Terra, ligada à Igreja Católica e contrária à transposição), não acredita que o projeto vá resolver as dificuldades da população urbana e dos pequenos agricultores. Como para cada real investido na obra serão necessários outros dois para levar a água até as casas, ele duvida que o investimento vá ser feito.

Foi Siqueira quem criou a expressão “hidronegócio”: “A transposição é a última obra da indústria da seca e a primeira do hidronegócio”, afirma. Outro problema grave dos reservatórios, diz, é a evaporação: para cada litro armazenado, perdem-se três.

O Estado que mais receberá água da transposição é o Ceará, onde será gerenciada pela Cogerh (Companhia de Gestão de Recursos Hídricos), órgão estadual que controla o uso da água de 149 grandes açudes, com capacidade para armazenar 19 bilhões de m³.

A distribuição e o uso dessa água se dão por decisões coletivas de comitês de bacias, formados por integrantes de governos e da sociedade. Mesmo regiões com abundância experimentam conflitos entre demandas, já que a maior parte (60%) é apropriada pelo setor agrícola. Yuri Castro, diretor técnico da Cogerh, defende, porém, que a transposição foi projetada para resolver o problema de abastecimento humano e que o fará. Ele não vê contradição em também dar à água um uso comercial: “Se não tiver água, não tem desenvolvimento. Isso é básico”.

ENERGIA CARA

Para dar “garantia hídrica” aos nordestinos do semiárido, a transposição precisa tirar, no mínimo, 2,2 milhões de m³ de água por dia do rio São Francisco. Essa quantidade serviria para abastecer 27 grandes açudes nos 477 km de canais dos dois eixos principais.

Esses 27 açudes, que podem reservar 500 milhões de m³, liberarão água de forma controlada para alimentar reservatórios mais distantes, por meio de outros 1.268 km de canais e adutoras, que os Estados prometem construir, e por leitos de rios hoje intermitentes.

RETIRANDO A ÁGUA DO RIO

Para fazer a água chegar tão longe, contudo, a energia que acionará as bombas é estimada pelo Ministério da Integração em 56 mil megawatts-hora (MWh) por mês. A conta seria de R$ 28 milhões mensais, a preços do primeiro semestre de 2014, quando estava em seu pico. Na média histórica, o valor da eletricidade ficaria em torno de R$ 7 milhões ao mês.

O agrônomo e ambientalista João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, entidade especializada em estudos sobre a região Nordeste, diz que o custo da água é incompatível com o uso agrícola. Estudos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, do governo federal) apontavam já em 2006 que esse custo poderia ser de cinco a oito vezes superior ao custo médio de um projeto de irrigação.

Frederico Meira, coordenador da transposição pelo Ministério da Integração, informa que há regras para a destinação da água. Primeiro, para uso humano, depois para os animais e para a indústria e só então para a irrigação. Ex-gerente da companhia estadual de água no sertão de Pernambuco, Meira conta que, na seca de 2002, foi necessário interromper o fornecimento agrícola e industrial, até que também acabou a água para consumo doméstico. “Fiquei seis meses abastecendo uma cidade de 50 mil habitantes com caminhão-pipa.”

COLETA POLUÍDA

Em frente ao bar na cidade de Ibó (BA), a 20 km de Cabrobó (PE), o pipeiro José Pereira Neto, 33, pega água para encher o caminhão com que atende localidades da área rural, a mais de 60 km de distância. O cheiro de esgoto é forte, mas isso não o impede de entrar no rio para colocar o duto que leva água para o tanque do veículo. Quase não há coleta de dejetos nas cidades banhadas pelo rio.

O repórter pergunta se os moradores não reclamam do líquido sujo. O pipeiro mostra um pote com cápsulas de 20 gramas de cloro, distribuídas pelo Exército, e responde que a água fica boa rapidamente. “Coloca uma no tanque, e a água fica limpinha”. Neto faz parte de um sistema que consome quase R$ 1 bilhão por ano para levar água aos moradores do semiárido.

José Soares de Sá, o Cebola, trabalha como barqueiro no rio São Francisco, transportando alunos de áreas rurais para escolas na região urbana de Ibó. Seu pequeno barco está a 50 metros do mesmo bar frequentado pelo pipeiro Neto. Estacas para amarrar embarcações indicam que o rio já esteve bem mais perto do boteco.

“Só soltam a água da represa a cada 15 dias. O motor do barco já tá sentindo”, lamenta o barqueiro, explicando que, quanto mais raso o rio, mais o motor precisa trabalhar, pois é preciso desviar de mais baixios, o que alonga o percurso.

A dificuldade enfrentada por Cebola tem relação com a grande controvérsia do projeto: saber se o rio São Francisco tem água suficiente para a transposição. Estudos do governo apontam que 3% da água disponível seria desviada para o canal. A cifra dos que se opõem ao projeto é de 25% a 48%. O governo cita o valor mínimo a ser tirado, os opositores, os valores mínimo e máximo –e já considerando o que já é retirado atualmente do rio.

Quando os estudos de disponibilidade estavam em produção, era mais fácil justificar a retirada. O regime de chuvas das décadas de 1990 e 2000 fez com que a usina hidrelétrica de Sobradinho, rio acima de onde vai começar a retirada de água do São Francisco, vertesse água ao longo de dez anos –ou seja, deixava passar a parte da vazão que não seria empregada para gerar energia. Mas, na década atual, as chuvas escassearam, e Sobradinho não verteu água ainda. Em agosto, estava devolvendo ao rio 102 milhões de m³/dia, bem menos que os 160 milhões de m³/dia que deveriam chegar à foz do Velho Chico.

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