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Em santuário ecológico, água do rio vira ameaça para a saúde da população

O cenário é deslumbrante, cercado por muito verde, rios e belas cachoeiras. Os moradores do bairro do Tinguá, no município de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, são privilegiados pela natureza exuberante da Reserva Biológica Federal do Tinguá, mas por outro lado, as águas que fluem nos rios da região não chegam nas torneiras das residências. A falta d´água quase que permanente levou a população a uma alternativa arriscada para executar as atividades domésticas. Os moradores estão usando as águas poluídas das margens dos rios para consumo e higiene pessoal.

O morador Cesar Ribeiro Novaes, de 62 anos, é produtor de mudas para reflorestamento e reside em Tinguá há mais de 20 anos. Ciente dos perigos de consumir a água sem conhecer a sua qualidade, Novaes vem fazendo o alerta desde que a crise hídrica teve início na região. “O rio Ana Dantas, que atravessa todo o bairro, já está recebendo esgoto, podia estar despoluído, porque é uma obra barata. E a nossa comunidade, na falta de água que começou há uns três anos, utiliza ele no banho das crianças, uma água imunda com esgoto, para lavar roupa, louça”, conta. Para ele, o “patrimônio que a natureza criou” merecia ser melhor cuidado.

Novaes atribui o grave problema à gestão municipal, que não acompanha de forma devida o crescimento populacional do lugar. “A prefeitura de Nova Iguaçu não faz nada. Esse prefeito [Nelson Bornier/PMDB] que está aí já passou um mandato e já está em outro e nada, nada e nada. Eu gostaria de pedir a ele que tomasse vergonha na cara e olhasse por Tinguá. Ele veio aqui e caminhou nesta rua”, reclama o morador.

A crise da água teve um impacto tão grande que chegou a apelidar um bairro. “Pela comunidade usar uma bica que fica neste bairro para tomar banho, matar a sede e fazer todas as tarefas do lar, ficou com o nome de Biquinha”, explica Novaes. A dona de casa Maria da Conceição, de 37 anos, também enfrenta grandes dificuldades com a falta d´água. “Aqui só quando chove, só vem lá de cima. A gente vem para a biquinha lavar a louça, dou banho nas crianças, venho com a carrocinha encher os potes”, conta a moradora. Um pouco mais adiante na Estrada do Salgueiro, Maria de Fátima Alves Cardoso, de 40 anos, carrega baldes para lavar roupa em casa. “A água que vem lá de cima agora [apontando para um morro], tem até cabelo, cheiro de bicho podre, a gente usa a água para fazer comida, até para beber”, comenta. “A gente tem descer com carrinho de mão até a bica para pegar água”, conta.

O pequeno produtor Novaes conduziu a equipe de reportagem do Jornal do Brasil aos locais onde a população mais sofre com a “seca”, como eles mesmos chamam. Um dos tios de Novaes trabalhava como guarda florestal na Reserva do Tinguá e ele passou a frequenta o santuário ecológico desde “o tempo da Maria Fumaça”.

Na Estrada Real do Comércio, os moradores utilizam o rio Ana Dantas, mesmo tendo certeza de que a qualidade da água não é nada confiável. Encontramos a dona de casa Esterina Conceição Freitas, de 82 anos, que encontrou nas margens do rio uma solução manter as tarefas domésticas básicas. “Tem vezes que a gente leva mais de semana sem lavar uma roupa, se quiser lavar, tem que entrar nesta água aqui [apontando para o Ana Dantas]. Nesse brejo a gente tem que tomar banho, botar no banheiro, lavar roupa, pra tudo a gente se serve desta água”, conta a senhora. Em meio a conversa na beira do rio, uma das filhas de Estelina, Simone Conceição Freitas, de 42 anos, se aproxima e complementa – “e tem muito caramujo”. “A água está poluída. É jogado esgoto, e todo mundo usa direto”, conta ela.

“O que a gente pode fazer? Tenho o meu esposo acamado, tenho que lavar a roupa de cama, diariamente”, justifica dona Esterina. A outra filha da dona de casa, Patrícia Conceição Freitas, de 38 anos, contabiliza outras precariedades que afeta o bairro. “A gente está no abandono, não tem água, não tem esgoto, não tem saneamento, não tem nada. A luz [iluminação pública] dali pra lá não tem nem poste”, conta. Simone salienta ainda que a única praça do local está desativada e as crianças não têm alternativas de entretenimento.

Segundo a família, na mesma rua há várias pessoas com problemas de saúde. “E não temos acesso a um hospital. E como lavar roupa de uma pessoa acamada, nesta água podre?”, questiona ela, lembrando que a via está dentro de uma reserva biológica. Na casa ao lado, a moradora Maria de Fátima reclama que falta água há quatro anos. “Quando chove, a água até chega aqui, mas sem condições de lavar roupa, beber. A gente se vira como pode. Compra água para beber e o resto a gente faz aí dentro deste rio”, afirma. “Infelizmente, hoje a gente nem pode chamar de rio, pode chamar de valão”, diz ela.

“Como moradores, a gente teria que ser prioridade, mas, infelizmente, a nossa situação aqui é muito difícil. É complicado, a gente tem pessoas aqui acamadas que dependem da água, o ser humano precisa da água para sobreviver”, releva Maria de Fátima, que fez uma cirurgia recentemente e encontra dificuldades para chegar até a margem do rio.

Na Estrada do Trajano, nas proximidades da Estrada Real do Comércio, um senhor que preferiu não se identificar para a reportagem, deu uma teoria para a falta de água no bairro: “naquele tempo [em que ele se mudou para Tinguá] tinha muita água, porque não tinha ninguém para beber”, disse sorrindo. Para Novaes, o senhor está de “certa forma” com razão. “A prefeitura teria que fazer um levantamento de moradores e zoneamento, para controlar o crescimento do bairro. É mais água, esgoto, tudo. Assim, os serviços estão péssimos em todos os sentidos”, considera Novaes. Para ele, o principal problema ambiental é a ocupação desordenada na região, que aumenta a demanda que já não é bem atendida, como coleta de lixo, que atualmente aconteceu de forma irregular, segundo o morador.

O fundador do “Movimento Quem Ama Cuida”, Helder Ferreira, acredita que o problema de abastecimento de água em Tinguá tem relação com os loteamentos que estão sendo erguidos de forma acelerada e desordenada em sítios bem antigos que estão sendo vendidos e até às margens da Estrada do Tinguá. “Antes tinha apenas uma família morando em uma área [sítio], que de repente passa a ser ocupada por várias pessoas”, explica ele. As placas de “vende-se” nas portas dos sítios tomam volume a cada dia em Tinguá. Em algumas localidades, encontramos áreas desocupadas e com terrenos recentemente capinado. Com o aumento no volume do lixo, agregado à irregularidade na coleta, de acordo com os moradores, em muitos pontos já é comum encontrar as chamadas queimadas.

Novaes confirma que as queimadas estão acontecendo frequentemente, ele mesmo já plantou milhares de mudas pela sua empresa. “Por ano, de 10 a 15 mil mudas que atendem as medidas compensatórias que agridem a natureza, encomendadas pelos donos de sítios. O Ministério da Agricultura orienta todos os produtores trabalharem de forma legalizada para coletar mudas e criar sementes. E sempre vejo esta fiscalização do Ibama e os órgãos aqui responsáveis pelo meio ambiente”, diz Novaes.

Helder revela ainda uma outra preocupação da população com o meio ambiente e que pode ter relação com a crise hídrica. “Desde o ano passado, com a chegada de uma fábrica para alta produção de água mineral, os moradores sempre comentam que a companhia pode estar puxando mais água e faltando nas torneiras. Além disso, a política desta nova fábrica, que entrou no lugar de outra empresa que tinha a mesma atividade, não abastece mais o centro comercial de Tinguá, que desaqueceu, teve prejuízo e desempregou”, afirma o ativista.

Acesso ao Arco Metropolitano pode contribuir para o aumento da população em Tinguá 

Na opinião de Helder Ferreira, o crescimento populacional em Tinguá se deve em grande parte pelo novo acesso, bem perto dali, ao Arco Metropolitano, ligando os municípios na Baixada Fluminense por 145 km de rodovia. A obra é considerada pelos governos federal, estadual e municipal como uma das mais importantes do Estado nas últimas décadas, pelo seu perfil estratégico de ligar a região ao Porto de Itaguaí.

O arquiteto e urbanista professor do Instituto de Tecnologia da UFRRJ, mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e doutor em Urbanismo pelo PROURB/FAU/UFRJ e Bauhaus Universität Weimar da Alemanha, Humberto Kzure-Cerquera, avalia que as prefeituras deveriam ter se preparado para receber este grande empreendimento. “O maior problema que temos nas regiões metropolitanas brasileiras, é que foram criadas na década de 70 para que possibilitassem o desenvolvimento integrado, o que implica dizer que deveria haver consórcios entre os municípios, para a divisão de competências, responsabilidades e investimentos, mas isso não tem acontecido, e nem é pela diversidade de partidos entre eles. Elas existem porque têm aspectos similares, como economia, agricultura…O que justificaria a gestão consorciada, sob a tutela do governo do estado”, esclarece o especialista.

Kzure-Cerquera ainda explica que, um Arco Metropolitano é caracterizado por “trechos de paragens” em um corredor expresso. Nestes pontos, podem acontecer as ocupações irregulares no entorno. “Tem três tipos de ocupações. O loteamento regular, que tem autorização da prefeitura, aquele que é irregular, sem a autorização, e também os clandestinos, onde existe uma máfia de terras que se apropria da área ilegalmente”, diz. A lei 6.766, que define as regras de parcelamento, define que o investidor que desrespeita as normas, com infraestrutura fora dos padrões legais de parcelamento, pode ser preso. “Mas a gente nunca vê ninguém sendo preso por causa desta lei”, ressalta o urbanista.

Após conhecer o cenário encontrada pela reportagem do JB em Tinguá, Kzure-Cerquera avaliou que, no caso de áreas afetadas com assentamentos precários, irregulares, elas podem comprometer os mananciais, onde a água é produzida. “Se você tem hoje o discurso em busca da sustentabilidade, que sustentabilidade é esta que não trabalha fazendo uma projeção no tempo de quais as melhores ações que dão garantia de preservação ambiental, de proteção a vida humana e desenvolvimento socioeconômico equilibrado e continuadamente? Ou virou um discurso para agregar valores aos investimentos de empreiteiras?”, questiona.

O especialista analisa que o grande problema atual nas cidades é que elas nascem junto com a devastação no campo e comprometimento dos mananciais, que acabam interferindo diretamente no clima. “O rio Guandu está próximo ao Arco Metropolitano, tem que haver planejamento [das prefeituras] a curto, médio e longo prazo, com a gestão certa para este sistema funcionar”, destaca.

O engenheiro ambiental Adacto Ottoni, especialista em Recursos Hídricos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), classificou a situação do abastecimento de água em Tinguá como um caso de saúde pública. Segundo ele, o rio Guandu, que atravessa Tinguá, passa atualmente por um fenômeno característico da época de poucas chuvas. “A água está mais poluída por causa da seca. Faz a redução da vazão, por causa do rio Paraíba do Sul, que está com menos água, mas a poluição continua entrando. Então, cresce a carga de poluição”, esclarece o engenheiro, lembrando que o rio Guandu recebe 90% da demanda do Paraíba do Sul. “Ou seja, é uma situação preocupante para estes moradores”, destaca ele.

Ottoni reforça que o fato da pessoa não ter água potável em sua residência é considerado “risco extremo”. Ele acredita que os casos de doença na região podem estar associados a este consumo indevido da água do rio. “Pode pegar cólera, hepatite, basta a pessoa ser portadora que ela está transmitindo [a doença]. Ainda pega a água com poluição química, que vem do Paraíba do Sul e usando para tarefas de casa. Isso é risco de saúde pública, há grande possibilidade de contaminação”, avalia.

Para ele, o poder público deve agir rapidamente, já que esta contaminação pode ser ampliada para outras áreas da cidade, com a circulação dos moradores por outros pontos do município e do Rio. “A prefeitura tem que prestar atenção no problema deste crescimento desordenado. Se há lixo [nas ruas], problema de saneamento, tudo isso transmite doença. Essa população pode adoecer, sobrecarregar os hospitais, aumentar o risco de proliferação de doenças”, alerta.

JB procurou uma unidade da Secretaria de Meio Ambiente e Agricultura da prefeitura de Nova Iguaçu instalada no Centro de Tinguá para tratar das questões apresentadas pelos moradores, mas as portas estavam fechadas, por volta das 14 horas da quinta-feira (18).

Neste sábado (20/6), após o Jornal do Brasil entrar em contato com a Cedae para relatar os problemas no abastecimento em Tinguá, na sexta-feira (19), a companhia esteve com equipes no bairro para avaliar as possíveis anormalidades. Em nota, a companhia informou que o abastecimento da região depende da vazão da Represa de Tinguá, que esteve baixa devido ao período recente de estiagem. Porém, com as chuvas desta semana, a Represa voltou a operar com sua vazão normal (500 litros por segundo) e a região encontra-se abastecida. Os endereços fornecidos pela reportagem, assim como todos os outros que tiveram abastecimento irregular comprovado, terão suas faturas retificadas, sendo cobrado apenas o valor referente ao que foi consumido.

“A CEDAE adquiriu empréstimo de 3,4 bilhões junto à Caixa Econômica Federal para fins de eliminar problemas de abastecimento na Baixada Fluminense, chegando ao alcance de 100% de abastecimento, além de ampliar em cerca de 800 km a malha distribuidora de água potável, proporcionando um acréscimo de mais de 100.000 novas ligações domiciliares. Estas obras terão a execução de 17 novos reservatórios e 17 novas grandes elevatórias, além de recuperação de reservatórios e elevatórias existentes, propiciando que a ETA Guandu alcance o abastecimento de uma área maior da Baixada Fluminense, que hoje é abastecida por represas e sujeitas a problemas como este de estiagem. Com estas obras, as represas hoje existentes abastecerão uma área que até mesmo na estiagem terão capacidade para fornecer água de forma satisfatória para sua população residente. As obras em questão estão em processo licitatório e tem previsão de término total para daqui a 3 anos, mas a partir de 18 meses de seu início, com o término de algumas fases das obras, já haverá grandes melhorias no abastecimento da Baixada Fluminense”, diz o comunicado.

A Reserva Biológica do Tinguá estende-se por uma área de 26 mil hectares e abrange seis municípios da Baixada Fluminense, sendo a maior parte dentro de Nova Iguaçu. A população estimada pelo censo do IBGE no ano de 2010 é de 1.778 habitantes.

Resposta da prefeitura de Nova Iguaçu

A Prefeitura Municipal de Nova Iguaçu afirmou para o JB que vai tomar providências quanto as possíveis irregularidades em Tinguá. Por telefone, o secretário de Urbanismo, Habitação e Meio Ambiente, Giovanni Guidone, disse que vai apurar junto à Cedae os problemas ligados ao abastecimento de água. Para ele, as informações levadas pelo jornal são “novas” e ele não tinha conhecimento do cenário na região.

Quanto a questão do lixo, o secretário garantiu que a coleta está regular, mas vai apurar com a Companhia de Limpeza Urbana qualquer anormalidade, para evitar que haja como alternativa a queima dos detritos na área de reserva. Com relação ao desmatamento, Guidone disse que a sua secretaria realiza uma fiscalização constante, mas não consegue atingir toda a cidade, e pede que a população ajude denunciando os casos. Ele disse que se encontrar desmatamento e queimada em sítios, os responsáveis serão penalizados. Os possíveis loteamentos irregulares também serão investigados, mas garante que nunca recebeu denúncias desta natureza.

Nesta segunda-feira (22/6), os moradores da Baixada Fluminense que sofrem com o abastecimento irregular de água terão a oportunidade de participar do Fórum da Crise de Abastecimento na Baixada, que vai tratar da questão junto a autoridades e parlamentares, na Câmara de Vereadores de Nova Iguaçu, às 18h. Serão debatidas alternativas para resolver definitivamente o problema na região.

O encontro será promovido pela deputada Rosângela Zeidan (PT/RJ). “Resolvemos fazer o Fórum justamente para estar conversando com a sociedade civil, com os poderes, com as autoridades para fazer um levantamento, ouvir do poder público, que está sendo convidado, para nos dar uma diretriz de como resolver de fato o problema de abastecimento. Eu sou uma deputada da Baixada e sei que este problema da água é muito antigo, que está se agravando com o tempo. Na Alerj a gente já ouviu do estado que está ampliando a segunda estação do rio Guandu, no entanto, que garantia a Baixada vai ter que esta água vai beneficiar a população da região? A nossa preocupação é de aproximar as entidades desta discussão, para que a população possa estar esclarecida e se organizar para acompanhar essas novas obras na estação do Guandu”, disse a parlamentar.

Sobre a situação em Tinguá, Zeidan acredita que os órgãos responsáveis e o poder público devem dar um retorno satisfatório para a população e atender as demandas do lugar. O Fórum da Baixada terá representantes da Cedae, Ministério Público, Defensoria Pública, OAB, Crea-RJ e Agenersa.

 

Fonte: Jornal do Brasil

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