Eis uma expressão empregada frequentemente, em sentido figurado, diante de acontecimentos, situações antiéticas, vergonhosas ou impunes. Infelizmente, nosso país, hoje, vive um desastre em que nos cabe empregá-la em seus dois sentidos, real e metafórico. Assistimos atônitos e impotentes à tragédia de Mariana. O lamaçal alcança não só os estados diretamente atingidos, mas toda a sociedade.
Dom Luciano Mendes de Almeida, S.J (bispo conde, com título herdado de seu pai e concedido pela Santa Sé, exemplo de simplicidade e não ostentação), quando arcebispo da sé primacial de Minas Gerais, já exclamara de forma profética: “A lama está atingindo o nosso povo”. Referia-se o eclesiástico à situação moral e política do Brasil. Na verdade presenciamos a lama atingindo muitos, material e moralmente. A lamaceira pútrida, que corre no Rio Doce, é símbolo de nossa realidade, metáfora de nossa sociedade, cujo olhar desvia-se da natureza e da vida humana. É “a Casa Comum”, no dizer do Papa Francisco, que está ameaçada. Vendo a tragédia do distrito de Bento Rodrigues, um prelado mineiro afirmou: “Estamos todos atolados. Há lama que nos cobre os pés; um lodaçal que nos atinge no rosto; uma água suja e contaminada respinga em nossa face”.
É doloroso o drama daquela cidade mineira. A catástrofe invadiu o ecossistema e sufocou a vida. A crueldade com que a natureza foi atingida e, sobretudo, a dor dos que perderam familiares e tudo que tinham contracenam com a terrível destruição de casas, mortandade de animais e outros danos incalculáveis. Essa tragédia exige que se repensem as obras e os seus licenciamentos. Outras desgraças poderão recair sobre a população. Impõe-se a necessidade de um novo direcionamento, fora dos parâmetros da ganância e até mesmo da justificativa de que a economia não pode prescindir dessas atividades. Tal tarefa deve ser assumida, com urgência, por todos os poderes, em especial, pelos órgãos de controle público. Torna-se indispensável que sejam ouvidas vozes sensatas de todos os segmentos da sociedade. A tragédia de Minas desvenda outras possíveis catástrofes, como “bombas-relógio” a explodir a qualquer hora.
Na “Laudato Si”, o Sumo Pontífice traça o horizonte de transformações e mudanças urgentes em procedimentos e atividades para se reparar, no meio ambiente e na vida das pessoas, o que já se tem feito, de forma absurda, agredindo a natureza e desrespeitando o ser humano. Mas, o que esperar de tantos dos nossos representantes, se vários estão dentro de um charco putrefato como o lodaçal do Rio Doce? Este é símbolo, sinal do íntimo de parte de nossa sociedade.
Rompeu-se a barragem da decência; derrubaram-se os muros da ética e da moralidade; abriram-se as comportas do apropriar-se dos bens públicos, tornando-os privados. Correm pelos rios de nossa sociedade toneladas de volutabro, onde se verifica a ausência de lisura, probidade, cidadania e dignidade. A nação brasileira precisa de água limpa para lavar-lhe a alma, a mentalidade e o agir, que devem ser banhados nas fontes límpidas da honestidade, da justiça, do respeito ao que é público, à natureza, à vida e ao ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus. Vivemos hoje crises hídricas. Estas são denúncia e profecia. A falta de água e o tremedal, assolando diferentes regiões e estados de nosso país, representam e significam algo mais profundo, acometendo a alma de nosso povo. Segundo também o Evangelho, a água é símbolo da vida. Nossos irmãos estão ressecados pela ausência de solidariedade e pelo egoísmo, enxovalhados pelo lodaçal da corrupção e da impunidade. Segundo renomados especialistas em meio ambiente, a bacia hidrográfica do Rio Doce, o oceano (a partir da Praia de Regência) e sua biodiversidade poderão levar cerca de cem anos para recompor o seu equilíbrio ecológico. Perguntamos quanto tempo levará nossa sociedade para se recuperar de outro desastre: o moral, que atinge muitos, principalmente indefesos e inocentes? O Papa Francisco levantou a voz num grito de alerta. Mas, não raro, tem-se feito ouvido de mercador. É bíblico: “nem sempre os profetas são escutados”.
No plano material e do ecossistema em Minas Gerais, deverá haver uma grande frente de solidariedade a fim de cuidar dos que sofrem as consequências do desastre, atendendo urgências e necessidades. Mas, é hora também de encontrar a lucidez capaz de compreender a ecologia integral, inteligentemente indicada na interpelante Encíclica do Papa Francisco. Diante dos problemas atuais, é necessário “um olhar que leve em conta todos os aspectos da crise… e inclua claramente as dimensões humanas e sociais”. Essa deve ser a palavra de ordem para que o nosso povo não sofra com outras ondas de lama material e moral.
PADRE JOÃO MEDEIROS FILHO
(pe.medeiros@hotmail.com)