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A crise da água – Malu Ribeiro SOS Mata Atlântica

A região metropolitana de São Paulo vive a pior escassez de água dos últimos 80 anos. Há vários meses, o noticiário informa consecutivos recordes negativos no sistema Cantareira, reservatório responsável por abastecer a capital e vários municípios do entorno. No ápice da crise, o racionamento, até pouco tempo descartado pelo governo estadual, já é dado como certo, e outras medidas de contenção, como aplicação de multas para quem desperdiçar, estão sendo cotadas – ambas com impacto direto para o consumidor.
Para entender as causas desta situação crítica e o que pode ser feito para resolvê-la e para evitar novos colapsos, ouvimos Malu Ribeiro, especialista em gestão de recursos hídricos e coordenadora da Rede de Águas da Fundação SOS Mata Atlântica. Confira, a seguir, a sua opinião.

Idec: Quais são os fatores responsáveis por essa escassez histórica na região metropolitana de São Paulo?
MALU RIBEIRO: A crise decorre de décadas de mau comportamento em relação ao uso da água e do solo, e também de uma relação cultural equivocada que nós, brasileiros, temos com os recursos naturais. Vivemos uma cultura de abundância de água. Ninguém pensa em seca em região de Mata Atlântica, que é uma área de abundância de rios, cachoeiras e florestas. Mas viemos perdendo as florestas, por meio do uso do espaço urbano de forma completamente desordenada. Isso causou dois problemas graves: concentração do consumo da água [na região metropolitana] e aumento da poluição em praticamente oito vezes. A falta de água hoje na Grande São Paulo é muito mais decorrente da poluição e do desperdício do que do clima. Os eventos climáticos extremos potencializaram a crise, mas eles não são os culpados.

Idec: A Grande São Paulo tem baixa disponibilidade de água e problemas sérios de contaminação de mananciais. Nesse cenário, qual é a solução para a atual crise e para evitar que novas aconteçam?
MR: São três medidas estratégicas. A primeira é uma revisão séria e criteriosa do planejamento urbano, a fim de frear a tendência de ocupação de áreas de mananciais de forma desordenada e irregular. É preciso estabelecer que essas áreas são prioritárias para conservar a água e não podem ser utilizadas para outras finalidade.
Em segundo lugar, é necessário investir maciçamente e de forma rápida na universalização do saneamento, ou seja, oferecer para todas as pessoas água tratada, coleta e tratamento de esgoto. Na terceira ponta, precisamos de um modelo de gestão mais eficiente, que combata o desperdício. No papel, as leis são muito boas, mas elas não são postas em prática. Por exemplo, está previsto na Constituição que é proibido lançar esgoto em qualquer corpo d’água sem tratamento. Se a lei fosse cumprida, nossos rios não estariam poluídos. A poluição é o pior desperdício.

Idec: É financeiramente viável despoluir um rio como o Tietê ou o Pinheiros?
MR: Sem dúvida. É um crime não despoluir! Para cada dólar investido em saneamento básico, economiza-se de cinco a oito dólares em saúde pública. Mais de 70% das doenças de veiculação hídrica, que levam a óbitos e à ocupação de leitos de hospitais, são decorrentes de contato com a água contaminada.
Por que temos dinheiro para construir estádio de futebol para a Copa do Mundo, construir pontes estaiadas e duplicar vias da Marginal, mas não temos para despoluir o rio Tietê? São escolhas. Infelizmente, não priorizar a despoluição de rios é uma escolha feita por falta de educação para a cidadania.

Idec: Alguns especialistas têm afirmado que o racionamento já deveria ter sido adotado há vários meses. Você concorda?
MR: Não. O racionamento de água para o cidadão é a pior medida, pois penaliza quem não tem culpa pelo problema. O acesso à água de qualidade e em quantidade suficiente é um direito humano. Se houve falha do Estado no planejamento e no combate ao desperdício e à despoluição, não é o cidadão quem deve pagar por isso. Há setores que desperdiçam muito mais, como a indústria e a agricultura de irrigação, que não entram no racionamento porque têm outorga [para uso da água].
É uma falsa ideia a de que o racionamento ou o rodizio de água teriam ajudado a enfrentar a crise. Teria ajudado se tivessem sido adotadas medidas educativas desde o apagão de energia elétrica, em 2002. Mas agora o racionamento é inevitável. É uma medida totalmente emergencial, que terá reflexos no ano eleitoral. Vai ter uso político, o que faz da questão muito mais perversa do que ela já é.

Idec: Algumas cidades paulistas, como Campinas, já instituíram multas a quem desperdiça água e agora se fala em fazer o mesmo na capital. Em sua opinião, é justo punir os consumidores, sendo que as próprias concessionárias perdem muito mais água no abastecimento?
MR: É justo coibir toda forma de uso inadequado. Não é porque a pessoa paga pela água que pode fazer o que quiser com ela. Num período de crise, é preciso estabelecer qual é a cota de cada um. O Ministério Público e os órgãos de defesa do cidadão podem autuar a irresponsabilidade das companhias de saneamento também.

Idec: Uma das medidas anunciadas para ampliar o abastecimento na Grande São Paulo é a construção do Sistema São Lourenço. Mas o projeto implica na destruição de 34 hectares de Mata Atlântica, intervenção em área de proteção e retirada de moradores do entorno. Os benefícios compensam os prejuízos desse empreendimento?
MR: Não exatamente compensam os prejuízos, mas esse é um investimento necessário hoje e que passou por licenciamento ambiental. A crítica que se pode fazer é: por que demorou tanto para construir esse e outros reservatórios? Porque é politicamente delicado para São Paulo buscar água na região do Vale do Ribeira, usá-la e depois devolver esgoto para o interior do Estado. Essa é uma lógica perversa das regiões metropolitanas: concentram gente e atividade econômica, importam recursos naturais e exportam problemas. É insustentável. Mas, neste momento, o ideal seria construir mais reservatórios, porque a água da chuva é desperdiçada. No período de chuva, sofremos com enchentes e no período de seca, com escassez.

Idec: A região Nordeste é a que mais sofre com as secas no Brasil. O problema é mesmo de falta de água ou de distribuição do recurso?
MR: No semiárido é falta de água mesmo. Mas há tecnologia para que a vida nesse bioma seja sustentável. O erro é querer adotar um modelo de produção inadequado para o local, como a criação de gado. Vários países têm áreas de deserto e são muito mais eficientes em produção do que nós. Nós fizemos uma “cultura da seca”, que sustentou usos políticos e concentração de poder. O Brasil precisa entender os seus biomas e transformar essas características regionais em ativos econômicos, e não em problemas.

Idec: Segundo o Ministério das Cidades, em média, 38,8% da água tratada no Brasil é desperdiçada antes de chegar à torneira dos consumidores. O que deve ser feito para evitar tanto desperdício?
MR: Primeiro, um planejamento urbano mais adequado. Os maiores índices de desperdícios em São Paulo, por exemplo, estão em bairros onde a ocupação se deu de forma irregular. Mas não dá nem para comparar os índices [de desperdício] da capital paulista com o restante do país. No Norte, no Nordeste e no Rio de Janeiro, o desperdício é muito maior, de 42% a 44%, em média. Como uma empresa público-privada, a Sabesp tem uma capacidade de investimento tecnológico que não dá para comparar com as outras. A redução de perdas que São Paulo tem implementado tornou possível chegar até agora com água. Os municípios que não são operados pela Sabesp, como Guarulhos, já estavam enfrentando o rodízio há muito mais tempo.

Idec: A agricultura é responsável por 70% do consumo de água no Brasil e é também recordista em desperdício. É possível mudar esse quadro?
MR: Na verdade, a agricultura irrigada e a de monocultura são as responsáveis pelo desperdício. Há outras formas, como a agricultura familiar, que não desperdiçam tanto. Na irrigação, perde-se muita água por falta de investimento tecnológico e de fiscalização. O setor de agricultura no Estado de São Paulo foi o que ofereceu maior resistência à cobrança pelo uso do recurso. Eles conseguiram moratórias por sete anos para não pagar pela captação da água dos rios. É um setor economicamente muito forte, que tem uma grande influência política.
Se o produtor [de agricultura] pagasse mais caro pela água e este gasto estivesse incorporado em sua cadeia de produção, como acontece na indústria, o comportamento seria outro. Imagine se no pacote de arroz estivesse escrito “aqui estão embutidos ‘x’ litros de água”. Teria marcas que passariam a dizer “este arroz economiza água” ou “aqui se investe em meio ambiente”.

Idec: Quais mecanismos têm sido adotados por outros países em relação ao uso da água que poderiam servir de exemplo para o Brasil?
MR: Temos falado muito no modelo de Nova York. A cidade entrou em uma crise como a que enfrentamos agora, e adotou um instrumento econômico [para resolver o problema]: o pagamento por serviços ambientais. A companhia de água local fez um estudo e descobriu que se pagasse para os proprietários de fazendas não produzirem nada e só conservarem as matas, isso aumentaria a sobrevida do abastecimento de Nova York em 20 anos. Eles apostaram. Se o mesmo fosse feito nos nossos mananciais – como está previsto na lei de proteção dessas áreas, inclusive –, implementando esse instrumento em chácaras, sítios e fazendas, desde as nascentes em Minas Gerais até o último dos sete reservatórios do sistema Cantareira, seria formado um grande cinturão verde e isso aumentaria o nível dos lençóis freáticos, garantiria a qualidade dessas águas, gastaríamos menos com o tratamento e os reservatórios sofreriam menos impacto de eventos climáticos extremos.

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