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Raízes da crise elétrica e hídrica

O arcabouço econômico do sistema elétrico brasileiro foi estruturado em torno de um tripé por um grupo consultor canadense-americano na década de 1960. A base física do sistema foi organizada em torno de centrais hidrelétricas, os consumidores tiveram suas tarifas fixadas com base no custo do serviço prestado pelas concessionárias e os ganhos de eficiência econômica do sistema foram programados para serem obtidos com ganhos de escala proporcionados pela expansão do sistema.

A base hidrelétrica permitiu tirar proveito da disponibilidade de caudais volumosos de água e da topografia favorável à construção de vastos reservatórios hídricos próximos dos centros de consumo. A acumulação de água nesses reservatórios nos períodos chuvosos viabilizou o uso marginal de centrais térmicas para atender à demanda do mercado nos períodos de baixa pluviometria. Dessa forma, o despacho térmico ficou limitado à complementação do despacho hidrelétrico nos poucos e breves períodos de estiagem.

A gestão econômica com base no custo do serviço garantiu somatórias tarifárias suficientes para remunerar os investimentos das concessionárias a taxas superiores ao custo de financiamento dos projetos elétricos, viabilizando a expansão do sistema. Por outro lado, as tarifas para cada grupo de consumidores, estabelecidas com base em custos médios, permitiram o uso de subsídios cruzados entre esses grupos para atender às estratégias de expansão das concessionárias centradas no suprimento do parque industrial. As gestões, tanto da operação quanto da expansão, foram organizadas a partir da programação da oferta de energia das concessionárias; os consumidores assumiram o papel passivo de ajuste dos seus usos energéticos às tarifas impostas pelas concessionárias.

A rápida expansão do consumo provocado pelo desenvolvimento do parque industrial, pelo crescimento demográfico e pelo processo de urbanização gerou expressivas economias de escala em todas as fases da cadeia produtiva elétrica. Essas economias foram particularmente significativas na etapa da geração, cujo ápice foi alcançado em Itaipu.

Os ganhos de escala obtidos proporcionaram um círculo virtuoso de expansão elétrica que, ao repassar seus ganhos de eficiência econômica para a sociedade, constituiu-se em um dos principais vetores do desenvolvimento econômico brasileiro do período. O sucesso desse tripé cristalizou a percepção de que ele deve ser preservado para garantir a eficiência econômica do sistema elétrico. No entanto, o ambiente do sistema elétrico brasileiro sofreu profundas mudanças desde que esse tripé foi estabelecido.

O sistema tarifário baseado no custo do serviço foi formalmente abolido em 1993, porém as tarifas oferecidas aos consumidores permanecem baseadas em custos médios. Mais ainda, a prática de subsídios cruzados foi ampliada para contemplar diversas políticas governamentais (sociais, regionais, energéticas). Para garantir a operação econômica desses subsídios, uma plêiade de encargos tarifários foi agregada aos custos do sistema, obscurecendo seus custos reais. Dessa forma, as tarifas oferecidas aos consumidores distanciaram-se progressivamente dos custos de oportunidade da energia, incentivando o uso suntuoso de energia por alguns agentes (ar condicionado, por exemplo), enquanto outros agentes são desestimulados a aumentar o seu uso eficiente de energia nas atividades produtivas.

Apesar de a revolução nas tecnologias de informação ter removido as barreiras técnicas, econômicas e gerenciais que impediam a atuação dos consumidores na gestão da demanda de energia, a sistemática de gestão da operação e da expansão do sistema permanece organizada com base na programação da oferta de energia. Os sinais de preço consistentes com o custo marginal do suprimento de energia, indispensáveis para o ajuste de seus usos energéticos às condições econômicas vigentes no mercado elétrico, são negados aos consumidores. Desinformados quanto ao custo da energia, estes pressionam a demanda nos momentos de pico do consumo, provocando o uso intensivo dos reservatórios hidrelétricos e a elevação dos custos setoriais. As ineficiências econômicas desse regime tarifário são repassadas para o conjunto da economia.

A base física permanece articulada em torno de hidrelétricas, porém a expansão do sistema foi deslocada para a Amazônia, onde a topografia não é favorável à construção de grandes reservatórios. Para compensar o declínio relativo dos reservatórios, o parque gerador térmico foi ampliado para garantir o suprimento de energia nos períodos de estiagem. As centrais térmicas, desenhadas para operar complementarmente em algumas horas de poucos anos, passaram a ser despachadas para atender a muitas horas em todos os anos. Os custos operacionais do sistema elétrico explodiram, induzindo o ONS a gerir temerariamente os reservatórios hidrelétricos, colocando em risco não apenas a garantia do suprimento elétrico. Como estamos aprendendo, a gestão dos reservatórios hidrelétricos tem profundos impactos no suprimento de água da sociedade.

A finalização da interligação dos mercados elétricos regionais relevantes, a redução do ritmo de crescimento demográfico e a amenização do processo de urbanização deslocaram as oportunidades de ganhos de escala da geração para a etapa final da cadeia produtiva elétrica (distribuição). Como sinalizou o novo ministro de Energia, o essencial dos ganhos econômicos futuros do sistema elétrico virão de aumentos na eficiência com que os consumidores utilizam seu suprimento de energia. Para induzir esse movimento, é indispensável oferecer sinais de preço para os consumidores que estejam ajustados aos custos de oportunidade da energia. A liberalização do mercado atacadista de energia é condição sine qua non para tal empreitada.

 

Fonte: Valor Econômico

 

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